Backlash — Susan Faludi

Sara Wagner York
133 min readMay 2, 2018

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Tradução: Mário Fondelli Cap. 1, 2 e 3.

1 Tudo por culpa do feminismo

Ser mulher nos Estados Unidos neste fim-de-século: que maravilha! Pelo menos é o que se diz o tempo todo. Os políticos garantem que as barricadas já caíram. As mulheres “chegaram lá”. O mundo da publicidade se regozija. A revista Time proclama que a luta da mulher pela igualdade “foi amplamente vencida”. Matricule-se à vontade em qualquer universidade, arrume um emprego em qualquer firma de advocacia, solicite empréstimos em qualquer banco. Os líderes trabalhistas afirmam que agora as mulheres têm tantas oportunidades que não é necessária uma política que lhes garanta igualdade de condições. Os legisladores proclamam que atualmente as mulheres são tão iguais que já não é preciso haver emendas constitucionais para a Igualdade de Direitos. Até os anúncios de cartões de crédito estão saudando a liberdade da mulher a fim de cobrá-la. Enfim, as mulheres receberam os seus papéis de cidadania plena. E mesmo assim… Por trás desta celebração da vitória, por trás das afirmações, alegres e continuamente reiteradas, de que a luta pelos direitos femininos foi vencida, a mensagem que salta aos nossos olhos é outra. Você pode ser livre e igual o quanto quiser, ela diz às mulheres, mas nunca se sentiu tão infeliz. Este boletim de desespero está afixado em todos os lugares — nas bancas de jornais, na telinha da televisão, nos anúncios, nos filmes, nos consultórios médicos e nas publicações acadêmicas. As mulheres profissionais estão entrando em “parafuso” e sucumbindo a uma “epidemia de infertilidade”. As solteiras estão se queixando devido à “falta de homens”. O New York Times revela: as mulheres sem filhos andam “deprimidas e confusas” e cada vez em maior número. A Newsweek afirma: as mulheres não-casadas estão “histéricas” e prostradas numa profunda crise de “falta de confiança”. Os manuais médicos informam: mulheres em altos cargos executivos estão sofrendo como nunca de “distúrbios provocados pelo estresse”, queda de cabelo, nervosismo, alcoolismo e até enfartes. Os livros de psicologia advertem: a solidão da mulher independente representa hoje em dia “um dos mais graves problemas de saúde mental”. Até a histórica feminista Betty Friedan anunciou aos quatro ventos que as mulheres estão atualmente sofrendo de uma nova crise de identidade e de “problemas ainda sem classificação”. Como é que as mulheres podem estar tão mal justamente quando deveriam sentir-se abençoadas? Se a condição da mulher nunca foi tão prestigiada, como explicar que o seu estado emocional ande tão em baixa? Se as mulheres conseguiram o que queriam, então qual é o problema, agora? A opinião geral da última década aponta uma, e somente uma, resposta para esta confusão: a causa deste sofrimento deve ser o excesso de igualdade. As mulheres estão infelizes justamente devido ao fato de serem livres. As mulheres estão sendo escravizadas pela sua própria liberação. Elas se agarraram ao brilho dourado da independência e deixaram escapulir o único anel que realmente lhes interessa. Conseguiram assumir o controle da sua fertilidade, mas só para destruí-la. Perseguiram seus próprios sonhos profissionais — perdendo no caminho a aventura fe “violência” do aborto mais aceitável, ele raciocina, as ativistas dos direitos da mulher tornaram possível a explosão do homicídio nas telas. Ao mesmo tempo, outros rebentos da cultura popular acabaram forjando idêntica conexão: nos filmes de Hollywood, dos quais Atração fatal é apenas o mais conhecido, mulheres emancipadas, donas de suas próprias casas, agitam-se de olhos arregalados entre paredes nuas, pagando pela liberdade com uma cama vazia e um útero estéril. “O meu relógio biológico está tiquetaqueando tão alto que não me deixa dormir à noite”, grita Sally Field no filme Ensina-me a querer, quando, numa óbvia atualização para o cinema dos anos 80, uma atriz que outrora desempenhava o papel de indomável heroína é agora mostrada rastejando por um noivo. Nos programas do horário nobre da TV, mulheres solteiras, independentes e feministas são humilhadas, transformadas em harpias ou vítimas de esgotamento nervoso; as mais ajuizadas renegam os seus pendores para a independência nas cenas finais. Nos romances populares, como Louca obsessão de Stephen King, mulheres sozinhas reduzem-se a lamurientas solteironas ou trovejam como satânicos dragões, desistindo de qualquer aspiração que não seja o casamento, imploram por vínculos matrimoniais a estranhos ou dão machadadas em relutantes solteirões. “Estragamos tudo esperando demais”, soluça uma típica profissional de carreira arrependida em Singular Women de Freda Bright; ela e a irmã, ambas executivas, “são condenadas a ficar sem filhos para sempre”. Até a independente heroína voadora de Erica Jong literalmente se espatifa no fim da década, quando a autora substitui a densa Isadora Wing de Medo de voar, um símbolo da emancipação sexual dos anos 70, por uma amargurada carreirista em vias de recuperação de sua “dependência” em Any Woman ‘s Blues — um livro que tenciona, segundo as pomposas afirmações da autora, “demonstrar em que beco sem saída a chamada revolução sexual desembocou, e quão desesperadas as chamadas mulheres livres se tornaram nos últimos anos da nossa decadente época”. Manuais de auto-ajuda fornecem o mesmo diagnóstico para a atual afli- ção feminina. “O feminismo, tendo prometido um sentido mais forte para a identidade, lhe proporcionou uma crise de identidade”, conclui o grande sucesso editorial Being a Woman. Os autores do verdadeiro clássico Mulheres inteligentes, escolhas insensatas proclamam que a angústia das mulheres foi “uma infeliz conseqüência do feminismo”, porque “criou o mito, entre elas, de que o ápice da realização pessoal só poderia ser alcançado através da autonomia, da independência e da carreira”. Nos tempos de Reagan e Bush, os funcionários do governo se apressaram a endossar esta tese. A porta-voz de Reagan, Faith Whittlesey, no único discurso oficial da Casa Branca sobre a condição da mulher americana, definiu o feminismo como uma verdadeira “camisa-de-força” para as mulheres. Oficiais de justiça e juizes também levantaram o dedo acusador contra o femi- nismo, afirmando que viam uma conexão entre o aumento de independência feminina e o aumento da patologia feminina. Um delegado californiano explicou à imprensa: “as mulheres, atualmente, estão gozando de muito mais liberdade e, em conseqüência disso, estão cometendo mais crimes”. O procuradorgeral da Comissão sobre Pornografia dos Estados Unidos chegou mesmo a sugerir que o crescente sucesso profissional das mulheres poderia ser o responsável pelo aumento dos índices de estupro. Em seu relatório, os membros da comissão chegaram à conclusão de que, havendo um maior número de mulheres na escola e no mercado de trabalho, as mulheres simplesmente criaram mais oportunidades de serem estupradas. Alguns acadêmicos também se juntaram a este consenso — e são eles os “especialistas” que receberam o maior destaque por parte da mídia. Nos noticiários da TV e nos programas de entrevistas eles têm alertado as mulheres dizendo que o feminismo as condenou a uma “vida inferior”. Estudiosos de direito levantaram-se contra a “armadilha da igualdade”. Sociólogos afirmaram que reformas “inspiradas no feminismo” tiraram da mulher qualquer tipo de “proteção especial” que porventura tivessem. Economistas argumentaram que mulheres bem-remuneradas acabaram criando “uma família menos está- vel”. E houve demógrafos que, com grande estardalhaço, legitimaram o ponto de vista corrente com dados supostamente imparciais sobre a proporção entre o sexo e a incidência da fertilidade. Eles afirmam que possuem números que provam que a igualdade não combina com casamento e maternidade. Finalmente, algumas das próprias mulheres “liberadas” juntaram-se às lamentações. Em relatos pessoais, trabalhos que invariavelmente são recebidos com a maior simpatia pela indústria editorial, “supermulheres redimidas” contam tudo. Em The Cost of Loving: Women and the New Fear of Intimacy, Megan Marshall, uma escritora oriunda de Harvard, afirma que o “mito da independência” feminista transformou a sua geração num bando de velocistas infelizes e mal-amadas, “desumanizadas” pela carreira e “inseguras quanto à sua identidade”. Outros diários de supermulheres loucas acrescentam que “o exacerbado ponto de vista feminista”, como um deles o define, condenou instruídas executivas a noites solitárias diante de comida congelada e tristonhas bebidas. O triunfo da igualdade, eles alegam, só serviu para dar às mulheres problemas alérgicos, dores de estômago, tiques nervosos, por fim, coma. Mas de que “igualdade” será que tantas autoridades estão falando? Se as mulheres americanas são tão iguais, por que representam, então, dois terços de todos os adultos pobres? Por que mais de 80% das mulheres que trabalham em tempo integral ganham menos de 20 mil dólares por ano, uma porcentagem quase duas vezes maior do que o índice masculino de pobreza? Por que é muito mais provável que elas morem em casebres, que não tenham direito a seguro-saúde e que na proporção de dois para um em relação aos homens não tenham aposentadoria alguma? Por que o salário médio de uma mulher continua tão inferior ao salário médio dos homens quanto há vinte anos? Por que qualquer mulher com formação universitária continua ganhando menos que um homem que tenha apenas o curso secundário (exatamente como acontecia nos anos 50) — e por que a mulher com curso secundário completo continua ganhando menos que um homem com o curso incompleto? Por que, com efeito, as mulheres americanas têm que enfrentar uma terrível defasagem salarial baseada na discriminação sexual adotada em todo o mundo desenvolvido? Se as mulheres realmente “chegaram lá”, por que então quase 80% das que trabalham continuam presas a ocupações “femininas” — secretárias, auxiliares de escritório e balconistas? E por que, ao contrário, elas só representam 8% de todos os juizes federais e estaduais, menos de 6% de todos os associados em firmas de advocacia e menos de 0,5% de todos os gerentes das grandes empresas? Por que só menos de 5% do total de diretores-executivos são mulheres — e por que mais da metade das diretorias citadas na Fortune não têm sequer uma representante feminina? Se as mulheres “estão com tudo”, por que continuam desprovidas dos requisitos básicos para conseguir a igualdade na força de trabalho? Ao contrá- rio de praticamente todas as demais nações industrializadas, os EUA ainda não têm um plano de creches e assistência à infância — e mais de 99% dos empregadores do setor privado tampouco lhes oferecem um programa de assistência. Embora os líderes empresariais afirmem que levam em consideração e deploram a discriminação sexual, a América corporativa ainda não fez nenhum esforço sério para acabar com ela. Em 1990, numa pesquisa nacional da revista Fortune entre os altos executivos de mil companhias, mais de 80% reconheceram que a discriminação impede a ascensão funcional feminina — e mesmo assim, menos de 1% destas mesmas companhias considerava o fim da discriminação sexual como meta a ser atingida pelos seus departamentos de pessoal. Com efeito, quando se pediu que os encarregados de recursos humanos das referidas empresas classificassem as prioridades dos seus departamentos, a promoção das mulheres ficou em último lugar. Se as mulheres são tão “livres”, por que suas liberdades de reprodução estão mais ameaçadas agora do que há dez anos? Por que mulheres que querem adiar a gravidez têm hoje em dia menos opções do que há uma década? A disponibilidade de diferentes formas de contracepção diminuiu, as pesquisas para novos meios de controle de natalidade foram praticamente interrompidas, novas leis limitando o aborto — ou até informações sobre o aborto — de mulheres jovens e pobres foram votadas. Nem podemos dizer que a luta feminina para a educação chegou a bom termo; como provou uma pesquisa de 1989–3/4 de todas as escolas secundárias continuam violando a lei federal que elimina a discriminação sexual na educação. Nas universidades, as estudantes só recebem 70% da ajuda concedida aos seus colegas homens na forma de gratificações e bolsas de pesquisa — e os programas esportivos femininos só recebem uma fração daquilo que cabe aos masculinos. Nem podemos dizer que as mulheres gozam de igualdade em suas pró- prias casas, onde elas ainda se encarregam de 70% das tarefas — a única mudança ocorrida nos últimos 15 anos é que agora os homens da classe média acham que estão se ocupando mais com as tarefas domésticas. Em muitos estados os maridos que violentam suas mulheres ainda não são penalizados e presos, têm leis que condenam à prisão por violência doméstica — embora o espancamento tenha sido a causa principal de ferimentos em mulheres no fim dos anos 80. As mulheres que acham que a fuga é a sua única opção concluem que ela não chega a representar uma grande alternativa. Podem dizer à vontade que as mulheres foram “liberadas”, mas não é bem isto que as próprias mulheres pensam. A maioria das mulheres vem repetindo constantemente, em pesquisas nacionais, que ainda estão muito longe da igualdade. Quase 70% das mulheres ouvidas pelo New York Times em 1989 disseram que o movimento pelos direitos das mulheres estava apenas engatinhando. Na pesquisa de opinião encomendada pelo cigarro Virgí- nia Slims, em 1990, a maioria das entrevistadas concordou com a afirmação de que as condições do sexo feminino na sociedade americana tinham melhorado “um pouco, mas não muito”. Em mais e mais pesquisas ao longo da década, a avassaladora maioria das mulheres tem reivindicado igualdade de salários e oportunidades de emprego, uma emenda pela igualdade de direitos, direito de aborto sem interferência do Estado, uma lei federal garantindo a licença-maternidade, um sistema assistencial decente para as suas crianças. Não têm nada disto. Como é, então, que nós “ganhamos” a guerra pelos direitos das mulheres? Diante deste panorama, a tão alardeada idéia de que o feminismo é o responsável pela infelicidade das mulheres torna-se absurda — e irrelevante. Como veremos no capítulo a seguir, as aflições atribuídas ao feminismo não passam de mitos. Da “falta de homens” à “epidemia de infertilidade”, do “estresse feminino” à “prejudicial dupla jornada de trabalho”, estas pretensas crises femininas tiveram sua origem não nas condições reais da vida das mulheres mas sim num sistema fechado que começa e termina na mídia, na cultura popular e na publicidade — um contínuo feedback que perpetua e exagera a sua própria imagem fictícia da feminilidade. As mulheres, por sua vez, não apontam o movimento feminista como sendo a causa da sua infelicidade. Ao contrário, em pesquisas nacionais 75 a 95% delas acham que a campanha feminista melhorou as suas vidas, e a mesma proporção afirma que o movimento deveria continuar na sua luta por mudanças. Menos de 8% julgam que o feminismo possa ter realmente piorado as coisas. O que então está perturbando a população feminina? Se os numerosos avaliadores da Questão Feminina realmente quisessem saber, poderiam pelo menos se dar ao trabalho de perguntar às mulheres. Nas pesquisas de opinião pública, as mulheres classificam em massa a desigualdade, no trabalho e no lar, como sendo o tema mais relevante para elas. Não param de queixar-se com os entrevistadores da falta de oportunidades econômicas (e não de maridos); insurgem-se contra o fato de os homens que trabalham (e não das mulheres que trabalham) não passarem tempo algum com os filhos ou na cozinha. Os analistas de pesquisa da Organização Roper acham que a oposição masculina à igualdade é “uma das principais causas de ressentimento e estresse” e “um dos principais motivos de irritação das mulheres na atualidade”. O que as mulheres sentem que realmente lhes falta é justiça, e não alian- ças de casamento e berços. Quando o New York Times fez, em 1989, um levantamento entre as mulheres para saber “qual era o problema mais sério que elas estavam enfrentando”, a discriminação no trabalho ganhou disparado; as crises que os meios de comunicação e a cultura popular ficam citando o tempo todo nem chegaram a ser mencionadas. Na pesquisa do Virgínia Slims, em 1990, o que mais incomodava as mulheres era a falta de dinheiro e o fato de os maridos se recusarem a compartilhar na criação dos filhos e nas tarefas domésticas. Em compensação, ao serem perguntadas sobre o que achavam da procura de um marido, de um trabalho que não as “pressionasse tanto” ou de escolher o lar como opção, consideraram estes assuntos de interesse apenas periférico. Nos anos 80 o desconforto das mulheres com a desigualdade aumentou. Em pesquisas de âmbito nacional, as fileiras de mulheres que se queixavam da discriminação nos negócios, na vida pública e particular engrossaram a olhos vistos. O índice de mulheres insatisfeitas com a disparidade de oportunidades de emprego deu um salto de mais de dez pontos em relação aos anos 70, e o número de mulheres que se queixavam de obstáculos para promoções cresceu mais ainda. No fim da década, 80 a 95% das mulheres diziam sofrer discriminação no trabalho e tratamento salarial diferenciado. No governo Reagan, as denúncias de discriminação sexual subiram mais de 25% nas estatísticas da Comissão para a Igualdade de Oportunidades de Emprego, e as denúncias de assédio sexual em relação às mulheres trabalhadoras mais do que duplicaram. No lar, um número muito maior de mulheres queixou-se com os entrevistadores de maus-tratos por parte dos homens, relacionamento desigual e, nas palavras da pesquisa do Virgínia Slims, dos esforços masculinos para “manterem as mulheres por baixo”. Na pesquisa da Roper, a propor- ção de mulheres que consideravam os homens “basicamente atenciosos, gentis e prestimosos” caiu de quase 70% em 1970 para 50% em 1990. E as mulheres também sentiram-se mais ameaçadas fora de casa: no levantamento do Virgínia Slims, em 1990, 72% das mulheres disseram sentir-se “mais amedrontadas e menos à vontade nas ruas, atualmente”, do que alguns anos antes. E para que não se atribua isto a um aumento generalizado das atividades criminosas, é bom lembrar que só 49% dos homens deram a mesma resposta. Embora o movimento feminista tenha certamente tornado as mulheres mais conscientes da sua própria desigualdade, nem por isto o crescente protesto feminino deveria ser descartado como sendo apenas “hipersensibilidade” atiçada pelo feminismo. Os analistas que acompanham a queda de status das mulheres têm trabalhado a todo vapor desde o começo dos anos 80. Pesquisas governamentais ou privadas estão mostrando que a já grande representação das mulheres nos trabalhos mais humildes está aumentando, enquanto a sua presença em ofícios melhor remunerados parou de crescer ou declinou, a sua minúscula representação nos níveis executivos lheres foram mortas pelos maridos ou pelos namorados, e a maioria delas foi assassinada logo após declarar sua independência da forma mais explícita possível — pedindo o divórcio e saindo de casa. No fim da década, as mulheres começaram a deixar transparecer nas pesquisas o receio de que a condição social do seu sexo poderia estar mais uma vez perdendo terreno. Tinham a impressão de estar diante de uma “erosão do respeito”, como foi resumido pelo Virgínia Slims em sua pesquisa de 1990. Segundo as conclusões da Organização Roper, depois de vários anos em que uma porcentagem cada vez maior de mulheres afirmava gozar de um status superior ao da década anterior a proporção caiu repentinamente para apenas 5%. E a queda foi mais acentuada entre as mulheres de trinta, a faixa etária mais visada pela mídia e pela publicidade — caindo cerca de dez pontos percentuais entre 1985 e 1990. Algumas mulheres começaram a juntar as peças. Na pesquisa do New York Times, em 1989, mais da metade das mulheres negras e um quarto das mulheres brancas soltaram o verbo. Disseram aos entrevistadores que, no entender delas, os homens estavam agora tentando retirar delas os ganhos que haviam conseguido acumular nos últimos vinte anos. “Eu queria mais autonomia”, afirmou uma enfermeira de 37 anos, acrescentando que seu nada amoroso marido “queria tirá-la dela”. A verdade é que os anos 80 presenciaram um poderoso contra-ataque aos direitos da mulher, levando a um retrocesso, a uma tentativa de reduzir o punhado de pequenas e sofridas vitórias que o movimento feminista a custo conseguiu. Este refluxo antifeminista, ou backlash, é extremamente insidioso: travestido de versão popular da Grande Mentira, enfeita-se pomposamente com um halo de verdade e proclama que as mesmas iniciativas que levaram a mulher a uma posição superior foram responsáveis pela sua ruína. O backlash é ao mesmo tempo requintado e banal, decepcionantemente “progressista” e orgulhosamente retrógrado. Ostenta as “novas” descobertas da “pesquisa científica”, assim como o moralismo bolorento do passado; transforma em notícias de TV tanto a oratória psicologizante dos analistas de tendências, quanto a frenética retórica dos defensores da Nova Direita. Este backlash conseguiu enredar praticamente todo o tema relacionado aos direitos da mulher em sua própria linguagem. Assim como a política de Reagan desviou o seu discurso para a extrema direita pintando o liberalismo com as mais diabólicas cores, da mesma forma o contra-ataque antifeminista convenceu o público de que a “liberação” da mulher era a verdadeira praga contemporânea — a razão de ser de uma interminável lista de roupa suja de problemas pessoais, sociais e econômicos. O que tornou as mulheres infelizes, nestes últimos anos, entretanto, não foi a “igualdade” — da qual elas ainda não desfrutam -, mas sim a pressão cada vez maior para deter, e até reverter, a busca feminina da igualdade. A “falta de homens” e a “epidemia de infertilidade” não são o preço da libera- ção; na verdade, elas nem existem. Mas estas quimeras são os cinzéis de um retrocesso que atinge toda a sociedade. Elas participam de um incansável processo corrosivo — uma boa parte do qual não passa de descarada propaganda — que serviu para exacerbar as angústias íntimas femininas e quebrar a sua vontade política. Qualificar o feminismo como inimigo das mulheres só disfarça os motivos do golpe contra a igualdade da mulher, desviando ao mesmo tempo a atenção do papel central do backlash e angariando recrutas para que lutem contra sua própria causa. Alguns analistas sociais poderiam perfeitamente se perguntar se as atuais pressões sobre as mulheres constituem de fato um refluxo — ou apenas a perpetuação da antiga resistência da sociedade contra os direitos da mulher. Não há dúvida de que a hostilidade contra a independência feminina sempre esteve entre nós. Mas se o medo e a intolerância em relação ao feminismo são uma espécie de condição viral da nossa cultura, isto não quer dizer que eles sempre se manifestem em sua fase aguda; os sintomas permanecem e periodicamente voltam à tona. E são justamente estes episódios de reincidência, como o que estamos vivendo agora, que podemos definir como “backlash”, um contra-ataque para impedir o progresso da mulher. Se investigarmos estas ocorrências na história americana (como faremos num capítulo posterior), descobriremos que tais surtos raramente são casuais; eles sempre são ocasionados pela percepção — correta ou não — de que as mulheres estão avançando a passos largos. São backlashes porque sempre surgem como rea- ção contra o “progresso” das mulheres, causados não apenas por um substrato de misoginia mas sim por esforços específicos pela melhoria de suas condições, esforços que sempre foram interpretados pelos homens — especialmente aqueles confrontados com ameaças reais ao seu bem-estar econômico e social em outros campos — como algo que iria levá-los à ruína. O avanço mais recente do backlash veio à tona no fim dos anos 70 entre as fileiras da direita evangélica. Já no começo da década de 1980, a ideologia fundamentalista tinha aberto caminho até a Casa Branca. Em meados da década, uma vez que a resistência contra os direitos da mulher tinha adquirido aceitação política e social, passou-se para a cultura popular. Em ambos os casos, a escolha do momento coincidiu com sintomas de que as mulheres estavam a ponto de vencer. Justamente quando a luta das mulheres pela igualdade de direitos parecia mais próxima da concretização de seus objetivos, o backlash passou-lhe a perna. Justamente quando um “abismo entre os sexos” manifestou-se nas urnas de 1980, e as mulheres começaram a capitalizar o fato politicamente, o partido republicano escolheu Ronald Reagan e ambos os partidos políticos começaram a descartar os direitos da mulher dos seus programas. Justamente quando o apoio ao feminismo e à Emenda pela Igualdade de Direitos chegou ao ápice em 1981, a emenda não passou no ano seguinte. Justamente quando as mulheres estavam começando a mobilização contra os espancamentos e as agressões sexuais, o governo federal sustou os fundos para os programas em prol das mulheres espancadas, derrotou propostas para subvencionar novos abrigos e fechou a sua Secretaria para a Violência Doméstica — apenas dois anos após a sua inauguração, em 1979. Justamente quando um número sem precedentes de mulheres jovens estava apoiando as metas feministas, em meados dos anos 80 (havia mais jovens, de fato, do que mulheres idosas), e quando a maioria das mulheres se consideravam feministas, a mídia anunciava o surgimento de uma ainda mais jovem “geração pós-feminista” que supostamente repudiava o feminismo. Justamente quando as mulheres alcan- çavam a maior aceitação de todos os tempos em defesa do direito de aborto, a Corte Suprema dos Estados Unidos deu para trás e reconsiderou o assunto. Em outros termos, o contra-ataque antifeminista não foi deflagrado pelo fato de as mulheres terem conseguido uma igualdade plena, mas pela mera possibilidade de elas conseguirem atingi-la. É um golpe usurpador que detém as mulheres muito antes de elas atingirem a linha de chegada. “Um backlash pode ser um sinal de que as mulheres realmente obtiveram sucesso”, diz a psiquiatra Jean Baker Miller, “mas os backlashes acontecem quando os avanços ainda são pequenos, antes que as mudanças sejam suficientes para ajudar um bom número de pessoas… Quase parece que os líderes dos backlashes usam o medo da mudança como ameaça antes que modificações de peso possam acontecer.” Na última década, algumas mulheres certamente fizeram enormes progressos antes do retrocesso, mas milhões de outras foram deixadas para trás, abandonadas. Algumas mulheres gozam agora do direito de aborto legal — mas não os 44 milhões, entre indigentes e alistadas no exército, que dependem do governo federal para a sua assistência médica. Algumas delas podem agora trabalhar em profissões muito bem pagas — mas não aqueles mais de dezenove milhões, que ainda ficam atrás de uma máquina de escrever ou de um balcão de loja. Ao ganhar força, o backlash selecionou e discriminou, e as poucas mulheres que tiveram sucesso procuram provar, como tática de sobrevivência social, que afinal de contas não estão assim tão interessadas em progredir. Algumas delas ostentam para isso sua deserção do movimento feminista, enquanto suas colegas de trabalho se juntam e aderem aos restos despedaçados da causa feminista. Enquanto pouquíssimas mulheres ricas e famosas aparecem nas crônicas sociais se gabando de “terem se encontrado como esposas” e de gostarem de ficar em casa “fazendo pão”, a maioria das trabalhadoras clama por seus direitos econômicos — filiando-se aos sindicatos como nunca aconteceu antes, fazendo greve por conta própria por salários justos e formando os seus próprios grupos incipientes em defesa dos direitos da mulher. Em 1986, enquanto 41% das mulheres com renda elevada decla- ravam à pesquisa do Gallup que não eram feministas, só 26% das menos afortunadas diziam ser da mesma opinião. Os avanços e os recuos das mulheres são geralmente descritos em termos militares: batalhas vencidas, batalhas perdidas, posições e territórios conquistados ou cedidos. A metáfora do combate não deixa de ter os seus méritos neste contexto e, obviamente, o mesmo tipo de relato e de vocabulá- rio já deve estar aparecendo aqui. Mas ao imaginarmos o conflito em termos de dois batalhões claramente postados cada um do seu lado, estaríamos esquecendo a natureza tortuosa e intricada de uma “guerra” entre as mulheres e a cultura machista em que elas vivem. Estaríamos esquecendo a natureza reativa de um backlash que, por definição, só pode existir como resposta a outra força. Quando o feminismo está em baixa, as mulheres assumem o papel reativo — lutando isoladamente e quase sempre às escondidas para se afirmarem contra a onda cultural dominante. Mas quando o próprio feminismo se torna a onda, para a oposição a recíproca não é verdadeira: ela finca o pé, agita os punhos, constrói muralhas e represas. E a sua resistência cria traiçoeiras ressacas e conflitantes correntezas. A força e o furor do contra-ataque antifeminista agitam-se por baixo da superfície, quase sempre invisíveis para a maioria. Na última década, houve ocasiões em que se tornaram visíveis. Já vimos políticos da Nova Direita condenando a independência das mulheres, manifestantes contra o aborto jogando bombas incendiárias em clínicas, pregadores fundamentalistas condenando as feministas como “prostitutas” e “bruxas”. Outros sinais da fúria do backlash, devido à sua própria brutalidade, podem às vezes chegar até a consciência do público — o repentino aumento dos casos de estupro, por exemplo, ou o crescente sucesso da pornografia que exibe extrema violência em relação às mulheres. Alguns indicadores mais sutis da cultura popular podem até merecer comentários, momentâneos e quase sempre confusos, por parte da mídia, para serem logo a seguir esquecidos pela consciência social: um relatório, por exemplo, em que se constata que a imagem da mulher nos programas do horário nobre da televisão degenerou de repente. Uma pesquisa na literatura de mistério revelou que o número de mulheres mutiladas e torturadas cresceu misteriosamente. A surpreendente notícia, dada por um comentarista de rádio, segundo a qual “já são tantas as músicas contendo a palavra bitch (cadela) para indicar a mulher, que algumas das músicas rap parecem estar virando músicas rape (estupro)”. O sucesso de comediantes violentamente misóginos como Andrew Dice Clay — que chamava as mulheres de “porcas” e “prostitutas” e se pavoneava em filmes em que as mulheres eram espanca- das, torturadas e mortas — ou radialistas como Rush Limbaugh, cujos ataques verbais contra as “nazifeministas” tornaram seu programa o mais popular talk-show do rádio no país. Ou o fato de a American Women in Radio & Television não ter podido outorgar o seu prêmio anual de propaganda, em 1987, para anúncios que mostrassem a mulher de forma positiva: simplesmente não encontrou anúncio algum dentro das especificações. Estes fatos estão todos relacionados entre si, mas não quer dizer que sejam coordenados. O backlash não é uma conspiração, com um conselho emanando ordens de uma sala de controle central, e as pessoas que se prestam aos seus fins muitas vezes nem estão conscientes dos seus papéis; algumas até se consideram feministas. Na maioria dos casos, as suas maquina- ções são disfarçadas e ocultas, impalpáveis e camaleônicas. E tampouco podemos dizer que todas as manifestações do backlash tenham o mesmo peso e o mesmo significado; muitas não passam de coisas efêmeras, geradas por uma máquina cultural que está continuamente à cata de “novos” ângulos. Considerados em conjunto, entretanto, todos estes códigos e bajulações, estes murmúrios e ameaças e mitos, levam irreversivelmente numa única direção: tentar mais uma vez prender a mulher aos seus papéis “aceitáveis” — seja como filhinha de papai ou criaturazinha romântica, seja como procriadora ativa ou passivo objeto sexual. Embora o contra-ataque antifeminista não seja um movimento organizado, nem por isto deixa de ser destrutivo. Com efeito, a falta de coordenação, a ausência de uma única liderança só servem para torná-lo menos visível — e talvez mais eficiente. Um backlash contra os direitos da mulher tem sucesso na medida em que parece não ter conotações políticas, na medida em que se mostra como tudo, menos uma luta. Ele é tanto mais poderoso, quanto mais consegue transformar-se numa questão privada, penetrando na mente da mulher e torcendo a sua visão para dentro, até ela imaginar que a pressão está toda na cabeça dela, até ela começar a impor as regras do backlash a si mesma. Nos anos 80, o backlash andou pelos subterrâneos secretos da cultura, circulando pelos corredores da bajulação e do medo. Ao longo do caminho usou vários disfarces: desde a máscara de uma condescendente ironia até a expressão sofrida da “profunda preocupação”. Os seus lábios demonstram piedade por qualquer mulher que não se enquadre na moldura, enquanto procura prendê-la na moldura. Professa uma estratégia de cizânia: solteiras contra casadas, mulheres que trabalham fora contra donas-de-casa, classe média contra operárias. Manipula um sistema de punição e recompensa, enaltecendo as mulheres que seguem as suas regras, isolando as que desobedecem. O backlash revende velhos mitos sobre as mulheres fazendo-os passar por fatos novos, ignorando qualquer apelo à razão. Acuado, nega a sua própria existência, levanta um dedo ameaçador contra o feminismo e procura desaparecer nos subterrâneos.

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O atentado contra os direitos da mulher usa a sua retórica para acusar as feministas de todos os atos que ele pratica. As fileiras do backlash culpam o movimento feminista pela “feminização da pobreza” — quando os próprios instigadores do backlash votaram os cortes orçamentários que causaram o empobrecimento de milhões de mulheres, lutaram contra a isonomia salarial e carcomeram as leis para a igualdade de oportunidades. As fileiras do backlash bradam que o movimento feminista não se importa com os direitos da criança — enquanto os seus próprios representantes na capital e nos estados bloquearam seguidamente todas as propostas para a assistência infantil, cortaram bilhões de dólares dos subsídios federais à infância e afrouxaram os padrões para o funcionamento das creches estaduais. As fileiras do backlash acusam o movimento feminista da criação de uma geração de infelizes mulheres solteiras e sem filhos — mas os seus defensores na mídia são os verdadeiros responsáveis por fazer com que as solteiras e as mulheres sem filhos se sintam monstros de circo. Culpar o feminismo pela “vida inferior” das mulheres significa não entender nada do movimento feminista, que se propõe oferecer às mulheres um leque maior de experiências. O feminismo continua sendo um conceito bastante simples, apesar das repetidas — e extremamente eficazes — tentativas de pintá-lo com cores sombrias transformarem suas defensoras em verdadeiras gárgulas. Como escreveu Rebecca West ironicamente em 1913: “Eu mesma nunca cheguei a entender direito o que quer dizer feminismo: só sei que as pessoas me chamam de feminista toda vez que expresso sentimentos que me diferenciam de um capacho.” Na verdade, o sentido da palavra “feminista” nada mudou desde que apareceu pela primeira vez numa resenha literária publicada na Athenaeum, em 27 de abril de 1895, descrevendo uma mulher que “tem nela a capacidade de lutar para chegar à sua própria independência”. É a proposta básica feita por Nora, há um século, em Casa de bonecas, de Ibsen, “antes de mais nada, eu sou um ser humano”. É simplesmente o cartaz que uma mocinha segurava em 1970 durante a Greve das Mulheres pela Igualdade: EU NÃO SOU UMA BONECA BARBIE. O feminismo pede que o mundo finalmente reconheça que as mulheres não são elementos decorativos, biscuits preciosos, membros de um “grupo de particular interesse”. Elas são merecedoras de direitos e de oportunidades, tão capazes de participar dos acontecimentos mundiais quanto os homens. O programa feminista é muito simples: pede que as mulheres não sejam forçadas a “escolher” entre justiça pública e felicidade privada. Pede que as mulheres sejam livres para definir a si mesmas — em lugar de terem a sua identidade definida pela cultura e pelos homens que as cercam. O fato de estes assuntos continuarem sendo tão incendiários deveria bastar para mostrar que a mulher ainda tem um longo caminho a percorrer antes de entrar na terra prometida da igualdade.

2 — Mitos e flashbacks — A falta de homem e úteros estéreis

No fim da década de 1980, muitas foram as mulheres que se tornaram amargamente conscientes destes dados “estatísticos”: • A “falta de homens” ameaçando as possibilidades de casamento. FONTE: Famoso levantamento feito em 1986 por pesquisadores das universidades de Harvard e Yale. RESULTADO: Uma mulher com formação universitária aos 30 anos tem 20% de probabilidade de se casar; aos 35, apenas 5%; e aos 40 anos, somente 1,3%. • Uma “desastrosa” queda do status econômico afetando as mulheres que se divorciam. FONTE: Pesquisa realizada em 1985 por um sociólogo da Universidade de Stanford. RESULTADO: A mulher média sofre uma queda de 73% no seu nível de vida um ano após o divórcio, enquanto o homem médio goza de uma elevação de 42%. • Uma “epidemia de infertilidade” acometendo mulheres profissionais que decidiram adiar a gravidez. FONTE: Levantamento feito em 1982 por dois pesquisadores franceses. RESULTADO: Mulheres de 31 a 35 anos têm 39% de probabilidade de não serem capazes de conceber, uma queda de 13 pontos percentuais em relação às mulheres com menos de 30 anos. • Uma “profunda depressão emocional” ou “esgotamento nervoso” afetando, respectivamente, solteiras e executivas. FONTE: Vários estudos psicológicos. RESULTADO: Ausência de dados precisos, apenas a constatação de que a saúde mental das mulheres nunca esteve tão ruim, e está piorando em direta proporção à tendência de as mulheres continuarem solteiras ou devotadas à carreira. Estes são os argumentos fundamentais que sustentam a reação contra a busca da igualdade por parte da mulher. Eles têm uma coisa em comum: são todos falsos. Sem dúvida isto pode parecer incrível. Todos nós já ouvimos estas afirmações e vimos estes dados tantas vezes, como se fossem ecos intermináveis das forças da reação, que fica difícil descartá-los. Como pode uma informa- ção tão distorcida, tão falha ou simplesmente falsa tornar-se uma quase-verdade universal? Antes de analisarmos estes mitos, talvez seja interessante examinar como a mídia tratou especificamente das pesquisas estatísticas, para que possamos responder à pergunta. ESTATÍSTICAS E A HISTÓRIA DE DOIS CIENTISTAS SOCIAIS Em 1987, a mídia teve a oportunidade de avaliar o trabalho de dois cientistas sociais. Um deles, uma mulher, denunciara a hostilidade à independência feminina; o outro, um homem, a endossara. “O que pudemos perceber de Shere Hite, nestas últimas semanas, é que se trata de uma típica representante da demagogia populista”, informava Newsweek no seu número de 23 de novembro de 1987, num artigo intitulado “Os homens não são o único problema dela”. Shere Hite acabava de publicar a parte final da sua pesquisa sobre sexualidade e relacionamentos, As mulheres e o amor: uma revolução cultural em andamento, um detalhado resumo das opiniões de 4.500 mulheres. Resultado da pesquisa: a maioria das mulheres está aflita e angustiada devido à persistente relutância masculina em tratá-las como iguais. Quatro quintos delas diziam que ainda tinham que lutar em seu próprio lar por respeito e pelos seus direitos, e só 20% afirmaram ter conseguido o mesmo status. A busca delas por uma maior independência, confessaram, tinha desencadeado um crescente rancor por parte dos companheiros. Não foi este, entretanto, o aspecto do livro que a imprensa escolheu salientar. A mídia estava ocupada demais atacando Hite em nível pessoal. A maior parte das evidências que conseguiram reunir contra ela envolvia histó- rias que, nas próprias palavras da Newsweek, “só indiretamente tinham a ver com o seu trabalho”. Espalhou-se o boato de que Hite dera um soco num motorista de táxi por ele tê-la chamado de “querida”, e de ela ter ligado para a imprensa fazendo-se passar por Diana Gregory, a sua própria assistente. Atitude bastante estranha, se verdadeira, mas que apenas sugere uma personalidade excêntrica, não demagógica. As maiores publicações do país dedicaram-se a procurar dicas acerca das estranhezas da pesquisa feminista com um alento fora do comum. O Washington Post até convocou um perito para comparar as assinaturas de Hite e de Gregory. Não há dúvida de que o trabalho de Hite merecia uma avaliação crítica: várias dúvidas bem fundamentadas podiam ser levantadas acerca da sua abordagem estatística. Mas as conclusões de Hite mereceram atenção muito mais para serem ridicularizadas do que para serem avaliadas. “Caracte- risticamente grandioso nos propósitos”, “extremamente improvável”, “duvidoso” e “sem o menor valor” foi como a Time liquidou o relatório Hite no seu artigo “Corta essa, companheiro” de 12 de outubro de 1987 — deixandonos a imaginar por que, se os editores realmente eram desta opinião, dedicaram ao assunto a capa e seis páginas internas. A revista afirmava que o livro estava cheio de “posições extremistas” de “vociferantes” mulheres que provavelmente estavam “insatisfeitas”. Por aquilo que a Time contava, entretanto, não dava para saber se as tais posições eram realmente extremistas: o verborrágico artigo só incluía duas citações, de duas frases cada, dos milhares de mulheres que Hite tinha exaustivamente investigado e citado. A mesma matéria, no entanto, abria muito espaço para os críticos de Hite — muito mais do que para a própria Hite. Quando os meios de comunicação decidiram finalmente criticar os métodos estatísticos de Hite, as acusações foram quase sempre equivocadas ou hipócritas. Os resultados da pesquisa eram “tendenciosos”, como alguns artigos afirmaram, porque Hite havia distribuído os seus questionários através de grupos que defendiam os direitos da mulher. Acontece, porém, que Hite enviara seus formulários utilizando um amplo leque de grupos femininos, inclusive associações religiosas, clubes sociais e centros de idosos. A imprensa denunciou que ela havia usado uma amostra muito pequena e não representativa. Contudo, como veremos, a maioria dos resultados de pesquisas sociais e psicológicas citados, sem a menor reavaliação, pelos jornalistas, baseia-se em amostras muito menores e não-casuais. E Hite especifica claramente no livro que os números não tencionam ser representativos; seu objetivo, ela explica, era simplesmente dar ao maior número possível de mulheres um fórum onde pudessem expressar os seus pensamentos íntimos e ocultos. Na verdade, o livro é muito mais uma coletânea de citações do que de números. Embora a mídia tenha classificado as histórias destas mulheres sobre os seus maridos e namorados como “azedas diatribes contra os homens”, as vozes no livro de Hite são muito mais desamparadas do que vingativas: “Entreguei de corpo e alma tudo aquilo que sou e possuo… ficando sem nada, solitária e ferida, e ele ainda quer mais de mim. Estou cansada, muito cansada.” “Ele se esconde atrás de um muro de silêncio.” “Sinto-me quase sempre marginalizada — e nunca sua melhor amiga.” “A esta altura, já duvido que ele me ame ou deseje… Tento ser feminina e atraente, e fazer coisas que o deixam contente.” “No dia-a-dia, ele vive me criticando por qualquer bobagem, portas do quarto ou do armário que deixei abertas… Não gosto de vê-lo zangado. De forma que fico fechando armários e gavetas, apagando as luzes, apanhando o que ele deixa espalhado etc, etc, sem dizer nada.” Destes relatos pessoais, Hite tira alguns dados acerca da atitude das mulheres em relação ao casamento, à monogamia e aos relacionamentos. O fato de a mídia achar estes dados tão ameaçadores para os homens demonstra quão facilmente o histerismo em relação à “agressão” feminina explode durante um refluxo antifeminista. Haveria realmente motivo para a imprensa ficar furiosa — ou até surpresa — por a queixa principal das mulheres em relação aos homens ser a de que eles “não escutam”? A mídia pareceu confirmar a queixa das mulheres mostrando-se surda às suas reclamações. Talvez tenha sido mais fácil dar uma lida rápida nas tabelas numéricas no fim do livro, do que digerir as centenas de páginas cheias de densas e perturbadoras histórias pessoais. Ou talvez alguns jornalistas simplesmente não agüentassem ouvir o que estas mulheres tinham a dizer; as acaloradas denúncias do relatório Hite sugerem uma emoção muito mais próxima do medo do que da raiva proposta pelas charges que ilustram a matéria da Time, que incluíam uma mulher de pé sobre o peito de um homem prostrado, uma mulher jogando um tubarão na banheira do marido e uma mulher agitando uma língua viperina na cara de um homem apavorado. Ao mesmo tempo que a imprensa ridicularizava Hite por ter sugerido que a resistência masculina poderia ser parcialmente responsável pela infelicidade das mulheres, dava o maior apoio a outro cientista social cuja teoria — afirmando que a atual aflição feminina se devia justamente à igualdade das mulheres — era mais condizente com o pensamento antifeminista. O psicólogo Srully Blotnick, colaborador da revista Forbes e um dos “especialistas” mais cotados pela mídia quando se trata das lutas enfrentadas pelas mulheres em suas carreiras, tinha levado a cabo o que ele chamou de “a maior e mais extensa pesquisa já feita nos Estados Unidos sobre a mulher trabalhadora”. A sua conclusão: o sucesso no trabalho “envenena tanto a vida profissional quanto a vida pessoal das mulheres”. No seu livro de 1985, Otherwise Engaged: The Private Lives of Successful Women, Blotnick afirmava que a sua pesquisa de 25 anos com 3.466 mulheres provava que executivas de sucesso eram propensas a uma vida sem amor, e que a sua solidão infeliz poderia até prejudicar a carreira. “Com efeito”, ele escreveu, “descobrimos que a ansiedade crescente é a maior causa subjacente da perda de emprego das solteiras entre 35 e 55 anos de idade.” Ele também aproveitou a ocasião para criticar o movimento feminista a que classificou de “cortina de fumaça atrás da qual a maioria das mulheres que tinham medo de ser rotuladas de egocêntricas e ambiciosas se escondia”. A mídia recebeu as suas descobertas calorosamente — ele era uma presença obrigatória em toda a parte, desde o New York Times até talk-shows na TV -, e revistas de âmbito nacional como Forbes e Savvy ofereceram-lhe centenas de milhares de dólares para levar a cabo mais pesquisas sobre estas carreiristas dominadas pela ansiedade. Ninguém duvidou da sua metodologia — embora houvesse uma margem bastante óbvia para ceticismo. Para começar, Blotnick afirmava ter iniciado a coleta de dados em 1958, ano em que ele estaria com apenas dezessete anos de idade. Com um orçamento bastante apertado, ele pessoalmente coletara um volumoso conjunto de dados (“três toneladas de arquivos, mais vinte e seis gigabytes em memória de computador”, gabou-se em Otherwise Engaged) -, mais dados do que os obtidos pelo maior estudo longitudinal do governo federal com orçamento multimilionário. E o título de “dr.” que ostentava também provou ser fictício; era fruto de um curso por correspondência num instituto de ensino não reconhecido. Quando informados, os editores da Forbes discretamente omitiram o “dr.” antes do nome de Blotnick — mas mantiveram a sua coluna. Em meados dos anos 80, Dan Collins, um repórter de U.S. News & World Report, foi encarregado de uma reportagem sobre o tema mais popular de então: a infelicidade das mulheres não-casadas. O editor sugeriu que ele entrasse em contato com o sempre mencionável Blotnick que acabava de aparecer numa matéria semelhante no Washington Post. Depois da entrevista, Collins lembra que começou a perguntar a si mesmo por que Blotnick havia se mostrado tão nervoso quando indagado acerca dos seus títulos acadêmicos. O repórter escavou fundo no passado de Blotnick e descobriu o que lhe pareceu uma história muito melhor: a carreira desta autoridade nacional erguia-se sobre areia movediça. Não só Blotnick não era um psicólogo, como também quase todo o seu currículo era lorota: até o professor que ele costumava citar como seu mentor atual estava morto há mais de quinze anos. Os editores de Collins em U.S. News, porém, não estavam interessados na história — um porta-voz explicou mais tarde que não tinham “gancho” para ela -, e o artigo nunca foi publicado. Finalmente, um ano depois, quando Collins já se havia transferido para o New York Daily News, conseguiu convencer o seu novo empregador a publicar a matéria. O relato de Collins fez com que o estado abrisse um inquérito policial por fraude contra Blotnick, e a Forbes na mesma hora cancelasse sua coluna. Mas a notícia dos equívocos e falhas de Blotnick não teve lá muita repercussão na imprensa; não provocou mais que uma pequena nota na Time, e nada na Newsweek. A editora de Blotnick, a Viking Penguin, levou adiante, então, os planos de editar o seu livro mais recente. Conforme explicou Gerald Howard, editor da Viking, “Blotnick tem uma percepção tão aprimorada do comportamento das pessoas no mundo dos negócios, que eu ainda continuo creditando-lhe algum fundamento empírico”. O comportamento da imprensa em relação às descobertas de Hite e de Blotnick sugere que os dados estatísticos que mais caem no agrado da opinião pública são justamente aqueles que deveriam despertar em nós as maiores dúvidas. Eles podem perfeitamente ter ampla aceitação, não por serem verdadeiros, mas por defenderem preconceitos maciçamente sustentados pela mídia. Com o backlash, as estatísticas tornaram-se receitas para o comportamento feminino esperado, palavras de ordem culturais para as mulheres, descrevendo como elas deveriam portar-se — e como deveriam ser punidas caso se recusassem a atender ao chamado. Estes “dados” foram apresentados como sendo simplesmente algo que refletia “como eram as coisas” para as mulheres, um substrato de realidade demográfica impossível de se alterar. A única escolha das mulheres era aceitar os números e baixar a cabeça conformadas. Com o fortalecimento do consenso em torno do backlash, as estatísticas sobre as mulheres deixaram de funcionar como barômetros sociais. Em seu lugar, os dados tornaram-se postos de controle da sociedade, posicionados a intervalos estratégicos ao longo da vida da mulher, enviando-lhe advertências sobre os perigos inerentes ao abandono da trilha convencionada. Estas diretrizes coercitivas determinaram a validade e a duração de praticamente todas as estatísticas sobre as mulheres nos anos 80, desde a coleta de dados até a sua divulgação final. Durante o governo Reagan, os demógrafos do Censo sofreram uma pressão cada vez maior para gerar dados propícios à guerra contra a independência das mulheres, para apresentar estatísticas “provando” a crescente ameaça da infertilidade, os riscos físicos e psíquicos inerentes ao aborto, o lado tenebroso da maternidade fora do casamento, os lastimáveis efeitos da ausência diária da mãe que trabalha fora. “As pessoas com que tratei no governo [Reagan] pareciam quase querer recriar as fantasias da sua própria infância”, diz Martin 0'Connell, chefe do setor de estatísticas sobre fertilidade do Censo. E qualquer resultado que não se adaptasse àquelas fantasias era descartado. O Serviço de Saúde Pública, por exemplo, censurou informações sobre os efeitos benéficos do aborto na saúde e rebaixou ou demitiu cientistas do governo federal cujas descobertas conflitavam com a política oficial pretensamente em prol da família. “Quase todas as pesquisas sociais sobre a família tiveram uma finalidade moral imediata — eliminar desvios como o divórcio, o abandono, os filhos ilegítimos e o adultério — muito mais que compreender a natureza fundamental das instituições sociais”, escreveu em 1948 o cientista social Kingsley Davis no seu clássico Human Society. Mais de cinqüenta anos depois, é um dos poucos depoimentos de um demógrafo que continuam válido.

A FALTA DE HOMENS: A HISTÓRIA DE DUAS PESQUISAS SOBRE O CASAMENTO

O Dia dos Namorados estava chegando, em 1986, e no Advocate de Stamford era a vez de a repórter Lisa Marie Petersen escrever a velha matéria sobre o arco e flecha de Cupido. Como ela mesma costuma lembrar, o seu “enfoque” seria “Namoro: está com tudo ou não está com nada?” Ela foi até o centro comercial de Stamford e entrevistou alguns homens que estavam comprando caixas de bombons e flores. Em seguida telefonou para o departamento de sociologia de Yale “só para arranjar algum dado sólido de uma fonte”, ela disse. “Sabe, algo que caísse bem no terceiro parágrafo.” Ela conseguiu falar com Neil Bennett — um sociólogo de 31 anos, solteiro, que acabava de concluir, com dois colegas, uma pesquisa ainda não publicada sobre os padrões das mulheres na questão do casamento. Bennett avisou que a pesquisa não estava ainda realmente concluída, mas quando ela o pressionou, contou o que tinha descoberto: as mulheres com formação universitária que tinham dado aos estudos e à carreira prioridade sobre o casamento teriam muita dificuldade para se casarem. “Infelizmente, parece que o mercado matrimonial pode desmoronar aos pés delas”, ele contou. Bennett começou a citar números: mulheres formadas, que nunca se casaram, aos 30 anos tinham uma probabilidade de 20% de se casarem; aos 35, as suas chances caíam para 5%; aos 40, para apenas 1,3%. E as mulheres negras tinham chances ainda menores. “Fiquei de queixo caído”, lembra Petersen, que estava com 27 anos e era solteira. Ela nunca pensou em questionar aqueles dados. “Normalmente a gente aceita qualquer coisa das universidades famosas. Sendo uma pesquisa de Yale, a gente simplesmente bota no papel.” O Advocate apresentou a notícia na primeira página. A Associated Press pegou imediatamente o artigo e o espalhou para todos os cantos da nação, e quem sabe do mundo. De uma hora para a outra Bennett se viu recebendo telefonemas da Austrália. Nos Estados Unidos, a notícia foi absorvida por todos os meios de comunicação de massa. Os dados estatísticos mereceram a primeira página de quase todos os grandes jornais e a atenção dos programas de entrevistas de maior audiência da televisão. Acabaram sendo aproveitados em seriados de TV, em filmes como Harry e Sally e Atração fatal, em revistas femininas desde Mademoiselle até Cosmopolitan, em dezenas de manuais de auto-ajuda, em serviços de namoro por correspondência, cursos noturnos de relacionamento e em cartões-postais. Até uma agência de publicidade em ônibus botou os resultados da pesquisa à mostra nos transportes coletivos do país inteiro, de forma que balouçantes solteiras a caminho do trabalho pudessem contemplar o cartaz de uma desolada mocinha de véu e grinalda, colocada ao lado de um quadro que apregoava suas diminutas chances de se casar. Bennett e os seus colegas, o economista de Harvard, David Bloom, e a estudante graduada em Yale, Patrícia Craig, previram a “crise do casamento” para as mulheres formadas por uma razão muito simples: as mulheres costumam se casar com homens em média dois ou três anos mais velhos. De forma que, eles raciocinaram, mulheres nascidas na primeira metade do baby-boom, entre 1945 e 1957, quando o índice de nascimentos aumentava todos os anos, teriam que correr atrás de homens das menos populosas camadas mais velhas. E aquelas mulheres que decidiram conseguir seus diplomas antes de suas certidões de casamento iriam ficar pior ainda, postulavam os pesquisadores — baseados na teoria de que Deus ajuda a quem cedo madruga. Ao mesmo tempo em que a pesquisa chegava ao conhecimento do público, no entanto, a idéia de mulheres só se casarem com homens mais velhos estava rapidamente se tornando superada; estatísticas federais já mostravam que noivas de primeiro casamento estavam desposando noivos com apenas, em média, 1,8 ano a mais. Mas seria impossível revisar os dados de HarvardYale à luz destas mudanças ou até reexaminá-los — pois o levantamento não havia sido publicado. Evidentemente isto não incomodava a imprensa, que escolheu ignorar outra pesquisa sobre a mesma matéria — publicada apenas alguns meses antes — que tinha chegado a conclusões opostas. A pesquisa, um relatório feito em 1985 por pesquisadores da Universidade de Illinois, concluía que a crise do casamento era irrelevante. “Esses dados”, escreveram os pesquisadores, “não sustentam teorias que vêem a diminuição dos casamentos como algo capaz de desempenhar um importante papel nas recentes mudanças do comportamento em relação ao casamento.” (Com efeito, no seu exame histórico e geográfico de dados matrimoniais, eles só puderam encontrar sinais de uma “crise do casamento” em algumas nações européias por volta de 1900 e em alguns países do Terceiro Mundo em época mais recente.) Em março de 1986, Bennett e os seus colegas apresentaram um estudo no qual revelavam que tinham usado um modelo paramétrico para calcular as probabilidades de contrair matrimônio das mulheres — um método não ortodoxo e até então inédito para se predizer o comportamento. Os professores Ansley Coale e Donald McNeil, de Princeton, tinham originalmente imaginado o modelo paramétrico para analisar padrões matrimoniais de mulheres mais velhas que já tinham completado seu ciclo matrimonial. Bennett e Bloom, que haviam sido alunos de Coale, pensaram que poderiam usar o mesmo sistema para prever possibilidades matrimoniais. Coale, interrogado a respeito, disse mais tarde que tinha dúvidas. “Em tese”, afirmou, “o modelo poderia ser aplicado a mulheres que não completaram o seu ciclo matrimonial, mas há algum risco envolvido.” Pior: Bennett, Bloom e Craig tiraram a sua amostra de mulheres de um levantamento geral de 1982, um ano sem coleta de dados censuais e que abrangem um número de famílias muito menor do que o Censo decenal. Os pesquisadores subdividiram então a amostra em grupos ainda menores — por idade, raça e formação — até chegar a generalizações baseadas em pequenas amostras de mulheres não representativas. Com a notícia da “falta de homens” fervilhando na mídia, Jeanne Moor- man, uma demógrafa do setor estatístico familiar e matrimonial do Censo dos Estados Unidos, não parou de receber pedidos de entrevistas de repórteres. Decidiu então examinar mais detalhadamente as conclusões dos pesquisadores. Doutora em demografía matrimonial, a própria Moorman era um exemplo de como as vidas individuais desafiam as classificações demográficas: ela se casara aos 32 anos, com um homem quase quatro anos mais jovem. Moorman fez no computador a sua própria pesquisa sobre casamento, usando métodos convencionais em lugar do modelo paramétrico, e baseandose no Censo de 1980 que abrangia 13,4 milhões de famílias, e não nos dados de 1982 usados por Bennett, que só abrangiam 60 mil famílias. Resultado: aos 30 anos, mulheres com formação universitária e que nunca se casaram antes têm de 58 a 66% de probabilidade de se casarem — o triplo das estimativas da pesquisa de Harvard-Yale. Aos 35, as chances eram de 32 a 41%, sete vezes mais do que as previsões de Harvard-Yale. Aos 40, as chances eram de 17 a 23%, vinte e três vezes maiores. E descobriu que uma solteira com formação universitária, aos 30 anos, tinha mais chance de se casar do que uma mulher com a mesma idade, apenas com diploma do primeiro grau. Em junho de 1986, Moorman escreveu a Bennett relatando as suas descobertas. Ela salientou que dados mais recentes também contradiziam as previsões dele quanto às mulheres formadas. Embora o número de casamentos estivesse baixando para a população em geral, havia subido para as mulheres com quatro ou mais anos de universidade que se casam entre 25 e 45 anos de idade. “Isto parece indicar”, ela frisou, “mais um adiantamento do que uma renúncia ao casamento.” A carta de Moorman era bem-educada, quase obsequiosa. Na condição de colega, ela escreveu, sentia-se na obrigação de relatar estes comentários, “que espero sejam bem recebidos”. Foram recebidos com o mais completo silêncio. Dois meses se passaram. Em agosto, o escritor Ben Wattenberg mencionou o estudo de Moorman na sua coluna publicada em vários jornais, frisando que o mesmo seria apresentado na Conferência da Associação Populacional da América (PAA), um importante encontro profissional de demógrafos. As descobertas de Moorman poderiam tornar-se bastante constrangedoras para Bennett e Bloom diante dos seus colegas. Moorman recebeu logo uma carta. “Pelas afirmações de Ben Wattenberg vejo que a senhora tenciona apresentar as suas conclusões à Associação”, escreveu Bennett; poderia ela enviar uma cópia “logo que estivesse disponível”? Como ela não a enviou imediatamente, ele telefonou e, Moorman lembra, “mostrou-se muito exigente. Na base do ‘Você tem que fazer isto, tem que fazer aquilo’”. Isto iria tornar-se um padrão no seu relacionamento com Bennett, ela conta. “Tive sempre a impressão de que ele estava dizendo ‘Suma daqui, menina, eu sou um professor universitário; estou certo e você não tem direito algum de questionar-me’.” (Bennett se recusa a comentar o seu relacionamento com Moorman ou qualquer outro aspecto da história da pesquisa sobre o casamento, afirmando que foi vítima de uma mídia excessivamente impaciente, a qual “interpretou erroneamente [a pesquisa] como eu nunca poderia ter imaginado”.) Enquanto isto, Moorman lembra, ela começava a sofrer nos escritórios do Censo a interferência de vários funcionários da administração Reagan. O escritório central enviou uma ordem para que ela parasse de falar com a imprensa acerca da pesquisa, uma vez que estas críticas eram “controvertidas demais”. Quando alguns programas de atualidade da TV a convidaram para que contasse o outro lado da história da falta de homens, ela teve que recusar o convite. Em lugar disto, mandaram que ela se dedicasse a uma pesquisa que a Casa Branca pedia — sobre como as mães solteiras com baixa renda abusam do sistema da previdência. No inverno de 1986, Moorman já tinha dado os retoques finais no seu relatório sobre o casamento com seus resultados mais otimistas, e o entregou à imprensa. Esta, quando se dignou a dar-lhe alguma atenção, relegou-o às páginas internas. Ao mesmo tempo, num editorial que apareceu em Advertising Age, no New York Times e no Boston Globe, Bennett e Bloom bombasticamente atacavam Moorman pela apresentação da pesquisa que só “tornava ainda mais confusa a questão”, queixavam-se. Moorman e mais dois estatísticos do Censo escreveram uma resposta ao editorial de Bennett e Bloom, mas o próprio Censo segurou a sua divulgação durante meses. “Quando eles finalmente completaram os cortes, já não valia nada”, lembra Moorman, “e quando a enviamos ao New York Times, já tinha se passado tanto tempo que eles não quiseram publicá-la.” O ensaio de Bennett e Bloom havia criticado Moorman por ela ter usado métodos convencionais que eles rotulavam de “duvidosos”. Moorman decidiu, então, repetir a sua pesquisa usando o próprio modelo paramétrico dos homens de Harvard-Yale. Ela levou os dados a Robert Fay, um estatístico cuja especialidade são os modelos matemáticos. Fay deu uma olhada nos cálculos de Bennett e Bloom e percebeu logo um erro fundamental. Eles tinham deixado de levar em conta os padrões diferentes entre as histórias matrimoniais das mulheres com diploma secundário e as com formação universitária. (As que concluem o secundário tendem a se casar em massa logo após o término dos estudos, formando uma abrupta e estreita curva para a esquerda. Aquelas com formação universitária tendem a se casar mais tarde, formando uma comprida e baixa curva para a direita.) Fay deu os retoques necessários e inseriu mais uma vez os dados, usando o modelo matemático de Bennett e Bloom. Desta vez os resultados foram quase idênticos aos de Moorman. Assim sendo, Robert Fay escreveu uma carta a Bennett. Salientou o erro e a sua importância. “Acredito que esta reavaliação não só demonstre a ine- xatidão dos seus resultados”, ele escreveu, “como também a necessidade de voltarmos ao resto dos dados para um mais aprimorado exame das demais conclusões.” Bennett respondeu no dia seguinte. “As coisas estão perigosamente fugindo ao nosso controle. Acho que chegou o momento de juntarmos as nossas forças na tentativa de voltarmos a ter pelo menos algum controle da situação.” Ele jogava a culpa toda em cima da imprensa e fazia questão de frisar que “David [Bloom] e eu decidimos parar de ter qualquer contato com a mídia”, talvez sugerindo que o Censo fizesse o mesmo. Mas Bennett nem precisava preocupar-se com o fato de o seu erro fundamental chegar às manchetes: Moorman, com efeito, já o tinha mencionado a vários jornalistas, e ninguém ficara interessado. Mesmo assim, Bennett e Bloom ainda tinham de encarar a incômoda possibilidade de os pesquisadores do Censo apontarem o seu erro na próxima reunião da PAA. Naquilo que Moorman suspeita ter sido uma tentativa para evitar tão indesejável acontecimento, Bennett e Bloom repentinamente propuseram que eles todos “colaborassem” numa nova pesquisa que apresentariam em conjunto na conferência da Associação — no lugar da de Moorman. Quando Bennett e Bloom descobriram que já haviam perdido o prazo de inscrição para um novo trabalho, desistiram da idéia de colaboração tão repentinamente quanto a propuseram. Na primavera de 1987, os demógrafos viajaram a Chicago para o encontro anual da PAA. Um dia antes da sessão, Moorman lembra que recebeu um telefonema de Bloom. Ele e Bennett iam tentar retirar de qualquer maneira a pesquisa sobre o casamento do programa, informou — substituindo-a por um relatório sobre fertilidade. O presidente da conferência, entretanto, recusou a substituição de última hora. Quando chegou o seu momento de apresentar o notório estudo sobre o casamento aos colegas, Bloom disse que ele era apenas um resultado “preliminar”, deu alguns rápidos esclarecimentos e apressou-se a ceder o lugar. Era a vez de Moorman. Mas devido a ainda maiores interferências dos seus superiores em Washington, ela pôde dizer muito pouco. O diretor do Censo, no intuito de evitar ulteriores controvérsias, mandara que omitisse qualquer referência à pesquisa sobre o casamento de Harvard-Yale. Três anos e meio depois que a pesquisa de Harvard-Yale dominara as manchetes nacionais, a pesquisa em si foi finalmente publicada — sem as estatísticas sobre casamentos. Bennett disse ao New York Times: “Não estamos nos esquivando por termos algo a esconder.” E os repórteres acreditaram nele. As famosas estatísticas foram omitidas, concluíram os noticiários, apenas porque os pesquisadores consideraram-nas “irrelevantes face às suas descobertas principais”. Em todas as reportagens sobre a pesquisa de Harvard-Yale, a imprensa passou por cima de um ponto fundamental: não havia falta de homens. Teria sido suficiente dar uma olhada no último Censo populacional para ver que havia cerca de 1,9 milhão de solteiros a mais do que solteiras com idade entre 25 e 34 anos, e cerca de meio milhão a mais entre 35 e 54. Com efeito, a proporção de homens não-casados era a maior de todos os tempos desde que o Censo começara a funcionar em 1890. Se alguém estava correndo o risco de não encontrar um cônjuge, este alguém era o homem na sua melhor idade para se casar: entre 24 e 34 anos, havia 119 solteiros para cada 100 mulheres solteiras. Segundo o Censo, nos anos 80 a proporção de mulheres que nunca se casaram, uma em cinco, era menor do que em qualquer outra época no século XX, exceto nos anos 50, e até menor do que na segunda metade do século XIX, quando uma em cada três mulheres era solteira. Se examinarmos a faixa de mulheres não-casadas com idade entre 45 e 54 anos, a proporção de solteiras em 1985 era, de fato, menor do que nunca — menor até do que nos matrimonialmente loucos anos 50 (8% destas mulheres eram solteiras em 1950, contra 5% em 1985). Na verdade, o único lugar onde um “excesso” de mulheres sozinhas poderia ser detectado, nos anos 80, era nos asilos de velhos. Qual era a idade média das mulheres que viviam sozinhas em 1986? Sessenta e seis anos. (A idade média dos solteiros, por sua vez, era de 42 anos.) A imprensa afirmava que a mulher dos anos 80 queria desesperadamente se casar — um desespero que aumentava com o passar do tempo. Pesquisas com mulheres reais, entretanto, contavam uma outra história. Uma abrangente pesquisa do Battelle Memorial Institute, de 1986, depois de examinar os dados referentes a 10 mil mulheres ao longo de quinze anos, descobriu que o casamento já não era o referencial principal na vida das mulheres e que elas, com 30 e poucos anos, não só estavam adiando, mas até evitando os vínculos matrimoniais. Em 1985 a pesquisa do Virgínia Slims relatou que 70% das mulheres acreditavam poder ter uma vida “feliz e completa” sem uma aliança no dedo. Na pesquisa feita pela Langer Associates and Significance Inc., em 1989, esta proporção tinha pulado para 90%. O levantamento do Virgínia Slims de 1990 descobriu que quase 60% das mulheres solteiras acreditavam ser muito mais felizes do que as suas amigas casadas e que as suas vidas eram “muito mais despreocupadas”. Um estudo encomendado pela revista Glamour em 1986 descobriu uma crescente preferência pela vida de solteira entre as mulheres de 20 e 30 anos: 90% das mulheres que nunca haviam se casado disseram que não se casaram porque não tiveram vontade. E uma pesquisa feita por Louis Harris em 1989 sobre solteiras ainda mais velhas — entre 45 e 60 anos — descobriu que a maioria delas afirmava não desejar o casamento. Uma análise dos dados de pesquisas oficiais do governo realizadas nos anos 70 e 80 registrou um aumento de felicidade de 11 % entre as mulheres solteiras de 20 e 30 anos — e uma queda de 6,3% entre as casadas com a mesma idade. Se o casamento jamais serviu como estímulo para a felicidade das mulheres, concluíram os pesquisadores, “então estes efeitos diminuíram consideravelmente nos últimos tempos”. Um levantamento de Woman’s Day, de 1985, após entrevistar 60 mil mulheres, descobriu que só a metade delas gostaria de se casar novamente com o marido se tivesse que fazer tudo de novo. Em vez de se casarem, as mulheres estavam preferindo viver junto com os seus amados. Os índices de coabitação quadruplicaram entre 1970 e 1985. Quando o governo federal encomendou uma pesquisa sobre os hábitos sexuais das mulheres solteiras, em 1986, pela primeira vez na história, os pesquisadores descobriram que um terço das mulheres não-casadas estava morando com um homem. Outros estudos demográficos calculam que pelo menos um quarto da queda no número de mulheres casadas devia-se ao fato de os casais preferirem viver juntos. Quanto mais bem remuneradas as mulheres são, menos vontade elas têm de se casarem. Um levantamento de 1982 sobre 3 mil solteiras descobriu que mulheres ganhando altos salários demonstram o desejo de continuar solteiras quase duas vezes mais do que as mulheres com baixa renda. “O que vai acontecer com o casamento e a maternidade numa sociedade em que as mulheres realmente tenham igualdade?” perguntava Charles Westoff, demógrafo de Princeton, em um artigo no Wall Street Journal em 1986. “Quanto mais independentes as mulheres se tornam, mais desinteressante torna-se para elas o casamento.” Por outro lado, os homens dos anos 80 eram um tanto mais ansiosos para se casarem do que a imprensa deixava transparecer. O número de homens superava de longe o das mulheres nas agências matrimoniais, nos clubes de encontros e nos classificados pessoais. Em meados dos anos 80 os serviços de encontros por vídeo lamentavam um excesso de três homens para cada mulher entre seus afiliados. Os classificados pessoais também demonstravam o mesmo desequilí- brio. A socióloga Theresa Montini, numa análise de 1.200 anúncios, descobriu em 1988 que a maioria deles era de homens heterossexuais na faixa dos 35 anos “desejando um relacionamento duradouro”. Quando a Great Expectations, a maior agência de encontros do país, fez um levantamento com os seus inscritos em 1988, descobriu-se que 93% dos homens queriam “um compromisso sério” ou o casamento. Somente 7% dos homens disseram buscar “um montão de encontros com pessoas diferentes”. Pedindo-lhes que descrevessem “o que é mais importante para você no dia seguinte, após fazer sexo com uma nova parceira”, só 9% dos homens responderam “Será que me saí bem?” enquanto 42% disseram estar imaginando se aquilo poderia levar a um “compromisso sério”. Estes homens tinham boas razões para buscar o casamento; se há um padrão que os estudos psicológicos demonstraram é justamente aquele que diz que a instituição do matrimônio tem um efeito imensamente benéfico na saúde mental do homem. “Estar casado”, avaliou uma vez o eminente demó- grafo do governo Paul Glick, “é cerca de duas vezes mais vantajoso para o homem do que para a mulher em termos de sobrevivência.” Ou como a socióloga Jessie Bernard escreveu em 1972: Poucos são os dados mais sólidos, mais convincentes e menos duvidosos do que a espetacular e sempre impressionante superioridade em quase todos os campos — demográfico, psicológico ou social — do homem casado sobre o homem solteiro. Apesar de todas as brincadeiras dos homens acerca do casamento, apesar de todas as queixas a respeito dele, é um dos grandes alicerces do sexo masculino. A observação de Bernard continua válida. Como afirmou Ronald C. Kessler em seus estudos sobre as alterações da saúde mental dos homens no Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Michigan: “Todo este negócio de dizer como é difícil ser uma mulher solteira não faz muito sentido se olharmos o que realmente acontece. Quem leva a pior são os homens solteiros. Quando os homens se casam, a saúde mental deles melhora de forma impressionante.” Os dados sobre saúde mental, registrados em dezenas de estudos sobre o casamento durante os últimos 40 anos, são consistentes e inquestionáveis: o índice de suicídios em solteiros é o dobro comparado aos homens casados. Os solteiros sofrem quase duas vezes mais de graves sintomas neuróticos e são muito mais sujeitos a esgotamento nervoso, depressão e até pesadelos. E apesar da imagem tipicamente americana do caubói solteiro sem preocupa- ções, na realidade o homem sozinho tem muito mais tendência a ser melancólico, passivo e cheio de fobias do que o casado. Quando comparados com mulheres solteiras, os homens não-casados não se saem melhor do que elas quando o assunto é a saúde mental. Os solteiros estão sujeitos a duas vezes mais desequilíbrios do que as solteiras e a todos os sintomas que caracterizam a aflição psicológica — desde desmaios até insônia. Numa pesquisa, um terço dos solteiros apresentou graves sintomas de neurose: os mesmos sintomas só apareceram em 4% das mulheres solteiras. Se a ampla divulgação da pesquisa de Harvard-Yale sobre casamento teve algum efeito, foi justamente o de transferir a maior parte da aflição dos solteiros para a mente das mulheres. No Wall Street Journal, uma mulher solteira de 36 anos reparou, com perspicácia, que o fato de não ser casada “nunca a preocupou minimamente” até saber dos dados da pesquisa; só então ela começou a sentir-se deprimida. Uma mulher de 35 anos contou ao USA Today: “Eu nem tinha pensado em me casar até que comecei a ler aquelas histórias pavorosas acerca de mulheres que nunca iriam se casar.” Numa matéria do Los Angeles Times, analistas declararam que depois do aparecimento da pesquisa, as pacientes solteiras ficaram “obcecadas” com o casamento, dispostas a se casarem com homens que elas nem amavam, só para reverterem “o quadro”. Quando a Great Expectations interrogou seus membros um ano após a divulgação da pesquisa descobriu-se que 42% das solteiras falavam agora em casamento a partir do primeiro encontro. O Estudo Anual das Atitudes da Mulher, levado a cabo pelo Instituto Mark Clements para numerosas revistas femininas, descobriu que o número de mulheres com receio de nunca se casar tinha praticamente dobrado no exato ano em que apareceu a pesquisa de Harvard-Yale, de 14 para 27%, chegando a 39% nas mulheres na faixa dos 25 anos, o grupo visado na pesquisa. Um ano após o relatório sobre o casamento, surgiu a notícia de que a idade das mulheres que se casavam pela primeira vez tinha baixado um pouco e, contradizendo uma tendência de 20 anos, o número de núcleos familiares tinha crescido mais rapidamente entre 1986 e 1987 do que o de núcleos nãofamiliares. Estas pequenas mudanças foram imediatamente recebidas como sinais da volta do casamento tradicional. “Um novo tradicionalismo, centrado na vida familiar, já está no ar”, afirmava jubilosamente o professor de ciências humanas da Universidade de Houston, Jib Fowles, num artigo no The New York Times em 1988. Fowles previa um “ressurgimento da família convencional até o ano 2000 (pai que trabalha, mulher que fica em casa com os filhos)”. Isto iria ser vantajoso para a indústria americana, ele lembrava aos homens de negócios. “Cortejar e namorar voltariam à moda, portanto a venda de flores estava assegurada”, ele notava. E “a volta à comida caseira seria um incentivo para as vendas dos supermercados”.

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O DESASTRE DO DIVÓRCIO SEM MOTIVAÇÃO: O RELATO DE DOIS CASOS

Nos anos 70, muitos estados americanos aprovaram as novas leis do divórcio “sem motivação” para que o processo se tornasse mais fácil: elas eliminaram as bases moralistas exigidas para se requerer o divórcio e definiram a partilha dos bens do casal conforme as necessidades e os recursos, sem levar em conta qual dos cônjuges era considerado responsável pela falência do casamento. Nos anos 80, estas leis de “inspiração feminista” foram duramente atacadas: a Nova Direita pintou-as como esquemas decididos a solapar a família, e a mídia e escritores populares apresentaram-nas como desavisadas traições a mulheres e crianças, golpes legais que, nas palavras de um jornalista, “jogaram milhares de mulheres da classe média num estado de miséria”. Talvez ninguém tenha colocado mais lenha na fogueira das reformas da lei do divórcio, na década do backlash, do que a socióloga Lenore Weitzman, cujo livro de 1985, The Divorce Revolution: The Unexpected Social and Economic Consequences for Women and Chiláren in America, veiculava números citados por qualquer um desde que fosse contrário às novas leis. De Phyllis Schlafly a Betty Friedan, da National Review ao telejornal da CBS, os “devastadores” dados estatísticos de Weitzman eram usados como prova de que as mulheres que procuravam livrar-se de um casamento infeliz estavam cometendo um grave erro financeiro: com as novas leis elas acabariam ficando mais pobres — iam ficar muito pior do que com as velhas leis, estas mais “protecionistas”, ou se tivessem continuado casadas. Se a mídia atrelou-se às descobertas de Weitzman com tão notável entusiasmo, não foi ela a única culpada pelo exagero, pois a própria Weitzman bradava em seu livro: “Ninguém sabe exatamente o quão devastador o divórcio tornou-se para mulheres e crianças.” Weitzman argumentava que, uma vez que o homem e a mulher têm condições diferentes dentro do matrimônio — isto é, o marido geralmente ganha mais e, em caso de divórcio, a mulher normalmente fica com os filhos -, usar a mesma medida em caso de divórcio acaba premiando o marido e castigando a mulher e os filhos. Este argumento parece bastante razoável, e Weitzman tinha até dados estatísticos para prová-lo: “Pesquisas demonstram que, em média, as mulheres divorciadas e os filhos menores no seu núcleo familiar experimentam um declínio de 73% no seu padrão de vida durante o primeiro ano após o divórcio. Os ex-maridos, por sua vez, gozam de uma elevação de 42% no seu padrão de vida.” Estes dados pareciam assustadores, e a imprensa passou-os adiante com o maior entusiasmo — sem questionar duas coisas fundamentais: estariam as estatísticas de Weitzman corretas? E, ainda mais importante, havia ela realmente demonstrado que as mulheres se davam pior com as novas leis do que com as velhas? No verão de 1986, logo depois que Lenore Weitzman acabava de apresentar ao Congresso as falhas das novas leis sobre o divórcio, ela recebeu uma carta de Saul Hoffman, um economista da Universidade de Delaware que se especializara em estatísticas sobre o divórcio. Ele dizia que ele e Greg Duncan, cientista social da Universidade de Michigan, estavam maravilhados com a então já famosa estatística dos 73%. Eles vinham examinando os efeitos do divórcio sobre as rendas durante os últimos 20 anos, e nunca, em lugar algum, haviam encontrado conseqüências tão dramáticas quanto aquelas por ela descritas. Eles haviam encontrado um declínio muito menor, 30%, no padrão de vida da mulher no primeiro ano após o divórcio e uma pequena melhora, de 10 a 15%, para o homem. E mais, Hoffman salientava, descobriram que para a maioria das mulheres esta queda no padrão de vida era temporária. Cinco anos após o divórcio, o padrão médio de vida da mulher era levemente mais alto do que o que tinha quando ainda casada com o ex-marido. O que mais deixava Hoffman e Duncan perplexos era o fato de Weitzman afirmar ter usado os métodos deles para chegar à sua estatística de 73%. A carta de Hoffman perguntava se ele e Duncan poderiam dar uma olhada nos dados. Nenhuma resposta. Finalmente, Hoffman telefonou. Weitzman disse que “não sabia como conseguir os dados”, pois estava em Princeton e os dados estavam em Harvard. Quando voltou a telefonar, ele conta, Weitzman disse não poder dar a informação porque tinha quebrado um bra- ço esquiando. Hoffman comenta relembrando um ano e meio de cartas e telefonemas para Weitzman: “Às vezes ela dava uma desculpa. Outras vezes simplesmente não atendia. Era um tanto estranho. Digamos que não é o comportamento esperado de um estudioso.” Finalmente, depois de os demógrafos recorrerem à Fundação Nacional de Ciência, que havia subvencionado a sua pesquisa, Weitzman cedeu e prometeu que iria deixar os dados em custódia no Centro de Pesquisas Murray de Radcliffe. Seis meses mais tarde, entretanto, eles ainda não haviam aparecido por lá. Hoffman recorreu novamente aos funcionários da Fundação. No fim de 1990, a biblioteca começou a receber os dados de Weitzman. No começo de 1991, os pesquisadores ainda estavam classificando os arquivos que não apresentavam condições de serem examinados. Enquanto isso, Duncan e Hoffman tentaram repetir os cálculos usando os números que apareciam no livro dela. Mas continuaram chegando a 33, e não a 73% de declínio no padrão de vida da mulher. Os dois demógrafos publicaram as suas conclusões em Demography. “As tão alardeadas conclusões de Weitzman estão quase certamente erradas”, escreveram. Não só 73% é um número “alto demais para não ser suspeito, mas também é incompatí- vel com as informações sobre mudança de renda e renda per capita que ela relata”. A reação da imprensa? O Wall Street Journal mencionou o artigo de Hoffman e Duncan num pequeno parágrafo da sua coluna sobre demografia. Ninguém mais tomou conhecimento. Weitzman nunca respondeu à crítica de Hoffman e Duncan. “Eles estão simplesmente enganados”, ela retrucou numa entrevista telefônica. “Os cálculos estão certos.” Ela se recusou a responder a qualquer pergunta adicional. A confirmação dos resultados de Hoffman e Duncan veio do serviço de Censo dos Estados Unidos que publicou a sua pesquisa sobre os efeitos econômicos do divórcio em março de 1991. Os resultados estavam de acordo com os de Duncan e Hoffman. “Os números de Weitzman estão altos demais”, diz Suzanne Bianchi, autora da pesquisa do Censo. “E a porcenta- gem de 73% nem mesmo é coerente com outros números do trabalho de Weitzman.” Como as conclusões de Weitzman podiam estar tão erradas? Há várias explicações possíveis. Primeira, as suas estatísticas, ao contrário das de Hoffman e Duncan, não se baseavam numa amostragem nacional, embora a imprensa normalmente a apresentasse como tal. Ela tirou os seus exemplos exclusivamente do tribunal de divórcios da Comarca de Los Angeles. Segunda, sua amostragem era incrivelmente pequena — 114 divorciadas e 114 divorciados. (E o índice de resposta foi tão baixo que Duncan e Hoffman, assim como outros demógrafos que reexaminaram a pesquisa, duvidam que a amostragem fosse representativa até para a cidade de Los Angeles.) Finalmente, Weitzman tirou as informações econômicas sobre estes casais divorciados de uma fonte reconhecidamente duvidosa — a própria memória deles. “Fiquei pasma com a facilidade com que eles se lembravam do valor estimado da casa, do montante da hipoteca, do valor do plano de aposentadoria etc”, ela escreve no livro. As lembranças, principalmente no ambiente emocionalmente carregado de um divórcio, dificilmente são uma fonte confiável de dados estatísticos; teria sido melhor se Weitzman tivesse ficado um pouco menos “pasma” com as recordações instantâneas e um pouco mais decidida a manter-se fiel aos dados de fato. Na verdade, a estatística de 73% não passa de um número no trabalho de Weitzman. E mesmo uma queda de 30% no padrão de vida de uma mulher tampouco é algo desejável. Embora a mídia se concentrasse nas suas implicações sensacionalistas, o número pouco tem a ver com o seu segundo e mais fundamental argumento — o de que as mulheres estão na pior condição desde a “revolução do divórcio”. Esta questão é muito importante porque chega ao âmago do argumento do backlash antifeminista: as mulheres se saem melhor quando “protegidas” do que quando iguais. Ainda assim, o livro de Weitzman, ao mesmo tempo que afirma repetidamente terem as novas leis piorado a vida das mulheres, conclui que os legisladores deveriam manter as novas leis sobre o divórcio com apenas alguns pequenos ajustes. E ela alerta firmemente contra a volta ao velho sistema de justiça. “É claro que não seria aconselhável nem apropriado que a Califórnia voltasse a um sistema mais tradicional”, ela escreveu. Nem é preciso dizer que esta conclusão jamais encontrou acolhida por parte da imprensa que se dedicava à cobertura do trabalho de Weitzman. Um exame mais profundo explica por que a autora teve de abandonar a sua teoria sobre o divórcio sem motivação: ela só entrevistara homens e mulheres que se divorciaram depois que a nova lei passou a vigorar na Califórnia. Ela não dispunha de dados comparáveis sobre casais que se divorciaram quando vigorava o velho sistema — e portanto não havia como testar a sua hipótese. (Um estudo posterior, de 1990, feito por dois professores de direito, chegou à conclusão oposta: mulheres e crianças ficavam numa situação ligeiramente melhor sob as cláusulas da nova lei.) Dados nacionais coletados pelo Censo mostram que a porcentagem de mulheres premiadas com pensão ou alguma outra forma de pagamento (apenas 14%) não é lá muito diferente do que era nos anos 20. Mesmo assim Weitzman argumenta que um grupo de mulheres — as donas-de-casa que viviam com o marido há muito tempo — ficou prejudicado com a nova lei. Os seus próprios dados, no entanto, mostram que donas-de-casa idosas e mulheres casadas há muito tempo são os únicos grupos de divorciadas aos quais de fato está sendo concedida pensão em número maior agora do que sob a antiga legislação. O aumento que ela relata para mulheres que ficaram casadas durante mais de dez anos é um respeitável 21%. O seu outro argumento é que com as novas regras da “partilha igualitá- ria”, o casal vê-se cada vez mais forçado a vender a casa, enquanto com as leis antigas, ela diz, o juiz normalmente concedia a mesma à mulher. Mas a nova lei do divórcio não exige a venda da casa e, com efeito, os autores da lei da Califórnia explicitamente afirmam que os juizes não deveriam usar a lei para forçar as mães e seus filhos a saírem de casa. Se mais mulheres são forçadas a vender a casa, a culpa não é das novas leis. O próprio exemplo que Weitzman dá de uma venda forçada da casa pouco esclarece. Uma divorciada de 38 anos desejava continuar na casa onde a família tinha vivido durante quinze anos. Não só ela queria poupar mais traumas para o filho adolescente, como também não podia dar-se ao luxo de uma mudança — pois a pensão que o juiz lhe outorgara era baixa demais. Desesperada, ela propôs sacrificar a sua parte do plano de aposentadoria do marido, cerca de 85 mil dólares, caso ele a deixasse ficar na casa. Ele não concordou. Tentou então refinanciar a casa, compensando assim o marido, mas nenhum banco aceitou dar-lhe um empréstimo a longo prazo pois ela só dispunha da pensão do ex-marido. E o juiz não foi mais condescendente: Supliquei ao juiz… Tudo o que queria era tempo suficiente para Brian [o filho] acostumar-se com o divórcio… Perdi o controle e chorei… mas o juiz recusou. Deu-me três meses para me mudar… O advogado do meu marido ameaçou-me caso não me mudasse dentro do prazo. A verdadeira fonte das mágoas das mulheres divorciadas pode ser encontrada não nos parágrafos da legislação sobre o divórcio mas sim no comportamento dos ex-maridos e dos juizes. Entre 1978 e 1985, a quantia média paga pelos ex-maridos para o sustento dos filhos caiu em quase 25%. Parece mais provável que os homens divorciados dêem um jeito de pagar as prestações do carro do que de cumprir com as suas obrigações em relação aos filhos — embora, para dois terços deles, a quantia devida aos filhos seja menor do que o valor da prestação do carro. Em 1985, só metade dos 8,8 milhões de mães separadas que supostamente deveriam estar recebendo pensão para os filhos estava realmente recebendo alguma coisa dos ex-maridos, e só metade desta metade estava conseguindo a quantia total. Estudos sobre estratégias de arrecadação têm provado que só há uma tática capaz de despertar a consciência moral de pais negligentes: ordem de prisão. Como observou a socióloga Arlie Hochschild, o descaso econômico pode ser um novo sistema que alguns homens divorciados bolaram para continuar a controlar as suas antigas famílias: “A ‘nova’ opressão fora do casamento cria portanto uma tácita ameaça contra as mulheres dentro do casamento”, ela escreve. “O patriarcado não desapareceu; só mudou de forma.” Ao mesmo tempo, funcionários públicos e oficiais de justiça nada faziam para dar o bom exemplo. Uma auditoria federal descobriu em 1988 que trinta e cinco estados não estavam cumprindo as leis federais para o sustento dos filhos. Pesquisas em vários estados descobriram, ao contrário, que os juizes estavam propositadamente interpretando de maneira errada os estatutos de forma que a mulher não ficasse com a metade mas sim com um terço de todos os bens do casal. A própria Weitzman chegou à conclusão de que o antagonismo judicial em relação ao feminismo estava piorando a situação das mulheres divorciadas. “O conceito de ‘igualdade’ e a linguagem sexualmente neutra da lei”, ela escreve, foram “usados por alguns advogados e juizes como uma determinação de ‘tratamento igualitário’ com vingança, uma vingança que só pode ser explicada como retaliação às exigências femininas de igualdade.” No fim das contas, a maneira mais eficaz para se corrigir as injustiças pós-divórcio entre os sexos é bem simples: basta corrigir as desigualdades de salário no mercado de trabalho. Se a defasagem salarial entre os sexos acabasse, concluiu um assessor do conselho federal em 1982, metade dos núcleos familiares dirigidos por mulheres seria imediatamente retirada da linha de pobreza. “O espantoso aumento de mulheres que trabalham é a melhor garantia contra esta vulnerabilidade”, afirma Duncan, notando que o acesso das mulheres a empregos bem remunerados livrou inúmeras divorciadas de um padrão de vida muito mais baixo. E este acesso, ele frisa, “deve-se principalmente ao movimento feminista”. Enquanto os cientistas sociais nos anos 80 insistiam nas “conseqüências devastadoras” do divórcio para as mulheres, praticamente não se ouviu falar nada a respeito dos efeitos nos homens. E não foi por falta de dados. Demógrafos especializados em estatísticas sobre divórcio do Instituto de Pesquisas Sociais reexaminaram, em 1984, os dados de três décadas referen- tes à saúde mental dos homens, e simplesmente concluíram — num relatório que quase passou despercebido — o seguinte: “Numa separação, os homens sofrem mais do que as mulheres.” Não importa para onde eles olhassem no espectro mental, os homens divorciados ficavam sempre na pior — desde depressão até colapso nervoso e tentativas de suicídio. Para começar, os homens são menos ansiosos do que as mulheres para cortar os vínculos: em levantamentos nacionais, menos de um terço dos divorciados afirma terem sido eles que queriam o divórcio, enquanto as mulheres afirmam que estavam pedindo o divórcio em 55 a 66% dos casos. Os homens também ficam muito mais arrasados do que as mulheres com a ruptura — e o tempo não alivia a dor nem cura a ferida. Uma pesquisa sobre pessoas divorciadas descobriu, em 1982, que um ano após a separação 60% das mulheres consideravam-se mais felizes em comparação com apenas a metade dos homens; a maioria das mulheres disse que tinha mais respeito por si mesma, enquanto só uma minoria dos homens sentia o mesmo. A maior pesquisa de âmbito nacional sobre os efeitos a longo prazo do divórcio descobriu que cinco anos após a ruptura 2/3 das mulheres achavam que a sua vida era mais feliz; só 50% dos homens tinham a mesma opinião. Chegando à marca dos 10 anos, os homens que diziam ter a sua qualidade de vida estacionada ou piorada subia da metade para 2/3. Enquanto, depois do mesmo número de anos, 80% das mulheres diziam que o divórcio havia sido a decisão certa, somente 50% dos ex-maridos concordavam. “Na verdade, as lamentações acerca do divórcio são mais dolorosas quando vêm de homens idosos”, observa a coordenadora da pesquisa, Judith Wallerstein. Mesmo assim, no seu muito comentado livro de 1989, Second Chances: Men, Women and Children a Decade After Divorce — muito bem recebido por grupos da Nova Direita como A Família na América e exibido na capa do New York Times Magazine -, Wallerstein prefere centralizar a sua atenção no fato de, segundo ela, os filhos ficarem em maus lençóis quando os pais se divorciam. Porém Weitzman tampouco dispunha de dados comparativos. Ela nunca se dera ao trabalho de testar a sua teoria num grupo de controle de famílias intactas. O seu livro de trezentas páginas explica esta falha fundamental com uma simples nota ao pé da página: “Uma vez que se conhecia tão pouco acerca do divórcio, era prematuro planejar um grupo de controle”, Wallerstein escreve, acrescentando que a sua intenção era a de “gerar hipóteses” primeiro para depois levar adiante o estudo com o grupo de controle numa segunda etapa — uma lógica de atire-primeiro-pergunte-depois, que resume bem o pensamento de muitos formadores de opinião antifeministas. “Não está nem um pouco claro o que deveria ser um grupo de controle”, Wallerstein explica mais tarde. Seria preciso controlar outros fatores que poderiam ter levado ao divórcio, tais como “frigidez e outros problemas sexuais”, ela argumenta. “Acho que as pessoas que pedem um grupo de controle não entendem a total complexidade do que um grupo de controle é”, ela diz. No fim da década, entretanto, Wallerstein estava se tornando cada vez mais revoltada com a maneira com que o seu trabalho estava sendo usado — e distorcido — pelos políticos e a imprensa. Numa sessão do Congresso, ela ficou abismada quando o senador Christopher Dodd propôs que, levando em conta suas descobertas, talvez o governo tivesse que impor um adiamento obrigatório para todos os casais que pediam o divórcio. E as revistas citaram erradamente o seu trabalho dando a entender que quase todos os filhos de pais divorciados se tornam delinqüentes. “Parece que qualquer coisa que você diga”, ela suspirou, “acaba sendo desvirtuada. É um tema muito político.” Se a campanha contra o divórcio sem motivação realmente não tinha números sobre os quais se fundamentar, a incansável propaganda contra o divórcio na década de 80 lhe serviu de eficaz substituto. Os americanos estavam finalmente convencidos. O apoio popular em prol da liberalização do divórcio, que vinha aumentando desde 1968, caiu 8% a partir dos anos 70. E quem contribuiu mais para a virada foram os homens; quase duas vezes mais homens do que mulheres disseram aos entrevistadores que queriam tornar o divórcio mais difícil para os casais.

A EPIDEMIA DE INFERTILIDADE: A HISTÓRIA DE DOIS ESTUDOS SOBRE GRAVIDEZ

Em 18 de fevereiro de 1982, o New England Journal of Medicine informou que as chances de uma mulher conceber caíam bruscamente depois dos 30 anos de idade. Mulheres com idade entre 31 e 35 anos, diziam os pesquisadores, tinham a probabilidade de serem estéreis num índice de 40%. Esta era uma notícia inédita: quase todos os estudos até então mostravam que a fertilidade só começava realmente a declinar perto dos quarenta anos ou até depois. O supostamente neutro New England Journal of Medicine não se limitou a publicar o relatório. Também apresentou um editorial paternalista de três páginas, exortando as mulheres a “reavaliarem as suas metas” e a terem filhos antes de começar suas carreiras. No mesmo dia, o New York Times botou a notícia na primeira página, numa matéria que elogiava a pesquisa definindo-a como “mais ampla e rigorosa” e “mais confiável” do que estudos anteriores. Dezenas de outros jornais, revistas e programas de TV logo se juntaram ao coro. Em um ano, as estatísticas tinham chegado a livros alarmistas abordando o “relógio biológico”. E como quem conta um conto aumenta um ponto, a porcentagem de 40% ia ficando cada vez maior. Um manual de auto-ajuda logo dizia que as mulheres de 30 estavam enfrentando uma “chocante probabilidade de 68% de infertilidade” — e imediatamente culpava as feministas que tinham deixado de avisar as mulheres acerca dos efeitos prejudiciais de uma carreira bem-sucedida. Os estudiosos franceses Daniel Schwartz e M. J. Mayaux tinham examinado em sua pesquisa 2.193 mulheres francesas submetidas a tratamentos contra a infertilidade em onze centros de inseminação artificial, todos mantidos por uma federação que financiava a pesquisa — e que afirmava não querer beneficiar-se com o crescente medo de infertilidade das mulheres. As pacientes examinadas na pesquisa mal podiam ser consideradas representativas da média das mulheres: eram todas casadas com homens completamente estéreis e estavam tentando a gravidez através de inseminação artificial. O esperma congelado, que era usado naquele caso, é muito menos eficaz do que a variedade “in natura”, fornecida por métodos naturais. Com efeito, num estudo anterior feito pelo próprio Schwartz, ele descobrira que as mulheres tinham quatro vezes mais chances de ficar grávidas se mantivessem relações sexuais regulares do que se inseminadas artificialmente. A pesquisa francesa também declarava estéril qualquer mulher que não ficou grávida depois de um ano de tentativas. (A regra dos doze meses é um desdobramento recente, inspirada por “especialistas em infertilidade”, introduzindo no mercado novas e custosas tecnologias reprodutivas experimentais; a definição de infertilidade costumava ser dada após cinco anos.) O prazo de um ano é amplamente contestado pelos demógrafos que salientam ser necessário um período médio de oito meses para um casal recém-casado conceber. Com efeito, uma pesquisa do Congresso descobriu que só 16 a 21% dos casais considerados inférteis pela nova definição de um ano realmente o são. O tempo é a melhor, e certamente a mais barata, cura para a infertilidade. Uma pesquisa extensiva realizada na Inglaterra com mais de 17 mil mulheres, uma das maiores pesquisas sobre fertilidade já levadas a cabo, revelou que 91% das mulheres acabam ficando grávidas depois de 39 meses. Depois da publicação da pesquisa francesa, muitos proeminentes demó- grafos debateram os seus resultados numa série de cartas e artigos publicados em revistas especializadas. John Bongaarts, membro do Centro de Estudos Políticos do Conselho Populacional, chamou a pesquisa de “muito pobre para se avaliar o risco da esterilidade feminina” e bastante duvidosa. Três estatísticos do Centro de Pesquisas Populacionais da Universidade de Princeton também desmentiram a pesquisa e avisaram que esta poderia levar a “desnecessária ansiedade” e “dispendiosos tratamentos médicos”. A esta altura até os cientistas franceses estavam deixando de apoiar o seu próprio trabalho. Numa conferência de profissionais, naquele mesmo ano, eles informaram aos seus colegas que nunca tiveram a intenção de aplicar os seus resultados a todas as mulheres. Mas nem o seu recuo, nem as críticas depreciativas dos colegas chamaram a atenção da imprensa. Três anos mais tarde, em fevereiro de 1985, o Centro de Estatísticas de Saúde do governo americano revelou os recentes resultados de sua pesquisa sobre a fertilidade que examinou oito mil mulheres. Descobriu-se que a mu- lher americana entre 30 e 34 anos só enfrentava uma probabilidade de 13,6% — e não de 40% — de infertilidade. As mulheres neste grupo etário tinham um risco de esterilidade apenas 3% mais elevado do que as mulheres com pouco mais de 20 anos. Na verdade, desde 1965, a esterilidade vinha tendo uma leve queda entre as mulheres de 30 até 35 anos — e até entre as mulheres quarentenas. No conjunto, a porcentagem de mulheres incapazes de procriar tinha de fato caído — de 11,2% em 1965 para 8,5% em 1982. Como de costume, esta notícia não teve a menor repercussão na mídia. E apesar das conclusões da pesquisa oficial, o Dr. Alan DeCherney, professor de medicina em Yale, principal autor do sermão editorial do New England Journal of Medicine, confirmou sua opinião. Indagado se tivera alguma dúvida quanto à mensagem do editorial, ele sorriu: “Não, dúvida alguma. O editorial queria ser polêmico. Eu tive um grande retorno. Apareci até na TV.” Procurando a fonte da “epidemia de infertilidade”, a mídia e as institui- ções médicas só levaram em conta as mulheres profissionais, convencidas de que a resposta se encontrava na crescente riqueza e independência da classe média feminina. Um jornalista do New York Times culpou o feminismo e o arrivismo que ele supostamente gerava por criarem a “irmandade estéril” entre as mulheres da classe média. A escritora Molly McKaughan advertiu as colegas de trabalho, incluindo ela mesma, em Working Woman (e, mais tarde, no livro The Biological Clock), acerca da “ameaçadora nuvem” da infertilidade. Devido principalmente ao movimento feminista, acusava, cometemos este engano: “Pusemos as nossas realizações pessoais em primeiro lugar.” Ao mesmo tempo, os ginecologistas começaram a chamar a endometrite, uma doença no útero que pode causar a esterilidade, de “mal das mulheres profissionais”. Ataca mulheres “inteligentes e estressadas, determinadas a ter sucesso num papel que não seja o de ‘mãe’ o mais cedo possível na vida”, afirmou à imprensa Niels Lauersen, na época professor de obstetrícia no New York Medicai College. (Na verdade, os epidemiologistas não encontram a endometrite em mulheres profissionais mais do que em qualquer outro grupo.) Outros alertaram acerca dos altos índices de aborto espontâneo entre as mulheres profissionais. (Na verdade, as mulheres profissionais são justamente as que têm o menor índice de aborto.) Outros lembraram que as mulheres, esperando e adiando, estariam mais sujeitas a crianças natimortas ou prematuras, doentes, retardadas ou anormais. (Na verdade, uma pesquisa de 1990, abrangendo quatro mil mulheres com mais de 35 anos demonstrou que elas concebiam crianças natimortas, prematuras, doentes ou retardadas exatamente na mesma proporção de mulheres mais jovens; em 1986, um estudo similar com mais de 6 mil mulheres tinha chegado a conclusões parecidas. Atualmente, mulheres com menos de 35 anos geram crianças com a síndrome de Down em proporção maior do que as com mais de 35 anos.) O recurso do recém-adquirido direito de aborto tornou-se mais uma das “causas” preferidas de infertilidade. Os ginecologistas avisaram as suas pacientes de classe média que, se elas abortassem “demais”, correriam o risco de desenvolver problemas de infertilidade mais tarde e até de esterilidade. Vários governos estaduais e locais até promulgaram leis exigindo que os médicos avisassem às mulheres que os abortos poderiam levar mais tarde a abortos espontâneos, nascimentos prematuros e infertilidade. Os pesquisadores gastaram muita energia e fundos governamentais à cata de dados comprobatórios. Mais de 150 pesquisas epidemiológicas tentaram encontrar, durante os anos 70 e 80, alguma relação entre aborto e infertilidade. Mas, tal como uma equipe de pesquisa que realizou uma revisão analítica de toda a literatura referente ao caso concluiu em 1983, só dez daquelas pesquisas usaram métodos confiáveis, e daquelas dez somente uma encontrou alguma relação entre aborto e posteriores problemas de gravidez — e esta pesquisa examinava uma amostra de mulheres gregas que se haviam submetido a perigosos abortos ilegais. Os métodos de aborto legal, escreveram os pesquisadores, “não têm nenhum efeito prejudicial na subseqüente capacidade de a mulher conceber”. Na verdade, a busca das mulheres pela igualdade econômica e educacional havia contribuído para a saúde reprodutiva e a fertilidade. Melhoria na educação e contracheques mais polpudos geram melhor nutrição e melhores condições gerais de saúde, contribuindo para uma maior fecundidade. Estatísticas oficiais mostram que mulheres com formação universitária e com alta renda têm um índice de infertilidade mais baixo do que aquelas que têm diploma do primeiro grau e rendimentos menores. A “epidemia de infertilidade” entre mulheres profissionais de classe média com mais de 35 anos era um programa político — e, para os especialistas de infertilidade, um instrumento de marketing -, não um problema médico. A mesma Casa Branca que alardeou a ameaça da infertilidade não dedicou um centavo à prevenção da infertilidade — e, com efeito, repeliu qualquer pedido de ajuda. O fato de os porta-vozes do antifeminismo terem mostrado tão pouco interesse pela verdadeira epidemia de infertilidade da década já devia bastar para despertar as nossas suspeitas. Os índices de infertilidade de jovens mulheres negras triplicaram entre 1965 e 1982. Os índices de infertilidade de mulheres jovens de todas as raças mais que dobraram. Com efeito, com a chegada dos anos 80, mulheres entre 20 e 24 anos estavam sujeitas a 2% mais de infertilidade do que as mulheres perto dos 30. Curiosamente não se ouviram comentários quanto a esta crise e às suas causas — que nada tinham a ver com o feminismo ou com a ascensão da mulher ao mercado de trabalho. A epidemia podia ser atribuída quase que exclusivamente à negligência dos médicos e dos funcionários do governo, que foram espantosamente lentos em combater a doença sexualmente transmissível chamada clamídia; os índices de infecção subiram no começo dos anos 80 e eram mais altos entre jovens mulheres com 15 até 24 anos de idade. Esta doença, por sua vez, deflagrou rapidamente doenças inflamatórias pélvicas, que foram responsá- veis pela maioria dos casos de infertilidade da década e atormentaram mais de um milhão de mulheres por ano. A clamídia tornou-se a principal doença sexualmente transmissível nos EUA, afligindo mais de quatro milhões de homens e mulheres em 1985, provocando pelo menos a metade de todas as inflamações infecciosas da pelve e ajudando a quadruplicar as mortalmente perigosas gestações ectópicas entre 1970 e 1983. Na última metade da década de 1980, uma em cada seis jovens mulheres sexualmente ativas estava infectada; os índices da infecção subiram até 35% em algumas clínicas das cidades do interior. Mesmo assim a clamídia era uma das menos faladas, diagnosticadas e tratadas doenças do país. Embora a literatura médica já tivesse documentado os catastróficos índices da clamídia durante os anos 80 e a doença estivesse custando mais de 1,5 bilhão de dólares por ano em tratamentos, só em 1985 os Centros para o Controle de Doenças começaram a esboçar alguns planos a respeito. O governo federal não providenciou campanha informativa alguma acerca da clamídia, nem mesmo pediu que os médicos comunicassem os casos da doença. (Exige, no entanto, que sejam comunicados os casos de gonorréia, que têm uma incidência de apenas a metade.) E embora a clamí- dia fosse de fácil diagnóstico e cura com antibióticos comuns, poucos eram os ginecologistas que se davam ao trabalho de fazer o teste. Quase três quartos do custo das infecções de clamídia, com efeito, foram devidos a complicações por falta de tratamento. Os políticos e a imprensa, nos anos 80, também pareciam não ter maior interesse pelos sinais de outra possível epidemia de infertilidade. Esta tinha a ver com os homens. De acordo com os poucos estudos disponíveis, a contagem de espermatozóides denunciava uma queda de quase 50% em 30 anos. (O baixo número de espermatozóides é uma das principais causas de infertilidade.) A contagem média do homem, relatou um pesquisador, baixara de 200 milhões por mililitro nos anos 30 para 40 a 70 milhões nos anos 80. A alarmante diminuição tem muitas possíveis explicações: toxinas ambientais, contato com elementos químicos no trabalho, excessiva exposição aos raios X, drogas, cuecas e calças justas demais, e até banhos de imersão demasiado quentes. As causas são obscuras, no entanto, porque as pesquisas na área da infertilidade masculina são muito escassas. Um estudo governamental sobre a infertilidade concluiu, em 1988, que devido à falta de informações sobre a infertilidade masculina, “qualquer esforço de prevenção e cura não passa de mero palpite”. O governo continua não incluindo os homens em suas pesquisas sobre a fertilidade. “Por que não os homens?”, fica repetindo o demógrafo-chefe das pesquisas do governo, William D. Mosher, como se estivesse ouvindo a pergunta pela primeira vez. “Não sei dizer. Isto é, teria de ser outra pesquisa. Precisaríamos de verbas para isto. Os recursos não são ilimitados.” Se a “epidemia de infertilidade” foi a primeira salva de tiros na campanha pró-natalidade dos anos 80, então a “escassez de nascimentos” foi a segunda. Os líderes desta campanha, pelo menos, foram mais honestos: eles acusaram as mulheres liberadas de optarem por ter menos filhos ou de simplesmente não tê-los. Não tentaram aparentar que estavam citando neutros dados estatísticos; admitiram orgulhosamente que estavam tentando manipular o comportamento feminino. “A maior parte deste livro é especulação e provocação”, admitiu tranqüilamente Ben Wattenberg na sua obra de 1987, The Birth Dearth. “Será que o comportamento das pessoas, e portanto a sua fertilidade, poderá mudar em breve?”, ele pergunta. “Espero que sim. Pois esta foi a finalidade básica do livro.” Em lugar de empurrar as mulheres para as maternidades com a ameaça de agora-ou-nunca, os teóricos da escassez de nascimentos procuraram apelar para os instintos mais baixos da sociedade — xenofobia, militarismo e intolerância, só para mencionar alguns. Se as esclarecidas mulheres brancas da classe média não começassem a procriar, advertiram eles, as indigentes, as loucas e as estrangeiras se encarregariam disto — e os Estados Unidos dentro em breve estariam liquidados. O psicólogo de Harvard, Richard Herrnstein, prognosticou que a reserva de gênios encolheria em quase 60% enquanto a população com QI abaixo de setenta aumentaria na mesma proporção, pois as mulheres “mais inteligentes” estavam negligenciando os seus deveres reprodutivos correndo atrás de diplomas universitários e de sucesso na carreira — e insistindo em controlar a natalidade. “Se a tendência atual continuar”, ele advertiu sombriamente, “ela poderá anular os efeitos de qualquer outra coisa que venhamos a fazer para mantermos a nossa posição econômica no mundo.” A documentação que ele dava para embasar esta tendência? Alguns comentários casuais de estudantes de Harvard que pareciam “não ver a hora” de terem filhos, queixas de algum amigo que queria mais netos e diálogos de filmes como Três solteirões e um bebê. O criador e defensor da tese da escassez de nascimentos era Ben Wattenberg, jornalista e membro do American Enterprise Institute, que relatou pela primeira vez a ameaça da escassez de nascimentos no jornal conservador Public Opinion — e, incansavelmente, não parou de divulgá-la numa roda viva de palestras, entrevistas no rádio e na televisão e em sua própria coluna. As suas táticas inflamadas representaram uma considerável mudança em relação à abordagem moderada que ele defendera uma década antes no livro The Real America, no qual censurava os teóricos da explosão populacional, acusando-os de espalhar uma “insuflada retórica do medo” e “ficção alarmista”. O índice de fertilidade, ele dizia, estava de fato em ligeira diminui- ção, o que lhe parecia “bastante saudável” pois deixava prever maior disponibilidade de empregos e salários mais altos. A escassez de nascimentos, dizia então entusiasticamente, “pode acabar sendo o mais importante agente singular para uma maciça expansão e uma maciça ascensão” da classe média. Passados dez anos, o cinqüentão pai de quatro filhos estava agora disparando sua metralhadora giratória contra a mesma “perigosa” tendência. “Será que o mundo vai dar um passo atrás?”, ele se perguntava em The Birth Dearth. “Poderia a cultura do Terceiro Mundo tornar-se dominante?” De acordo com o tratado de Wattenberg — com o subtítulo “O que acontece quando as pessoas do mundo livre não têm filhos suficientes” -, os Estados Unidos iriam perder o status de potência mundial, milhões de pessoas ficariam sem trabalho, as prolíficas minorias criariam “perigosas turbulências”, a menor arrecadação dos impostos diminuiria o arsenal de armas atômicas dos militares e o minguado exército não teria capacidade para “deter o potencial expansionista soviético”. Na hora de distribuir as culpas, o movimento feminista foi logo escolhido como principal bode expiatório. Por ter provocado o que agora ele definia como “violenta queda” da taxa de natalidade “abaixo do nível de manuten- ção”, ele culpava o desejo das mulheres de adiar o casamento e a maternidade, o interesse delas em melhorar a sua educação e a sua situação profissional, sua insistência em querer legalizar o aborto e o “movimento feminista” em geral. Para resolver o problema, ele ensinava, as mulheres deveriam ser convencidas a adiar suas carreiras até depois do nascimento dos filhos. A tese de Wattenberg sobre a escassez de nascimentos foi logo adotada pela Nova Direita, por cientistas sociais conservadores e candidatos à presidência que começaram a aludir a um “suicídio cultural” e a um “suicídio genético” com palavras nefastas — e racistas. Esta ameaça tornou-se um dos temas básicos nas plataformas políticas de Jack Kemp e Pat Robertson, que não perderam tempo em ligar a queda dos nascimentos ao aumento dos direitos das mulheres. Allan Carlson, presidente do conservador Instituto Rockford, propôs que a melhor maneira para acabar com a escassez de nascimentos era revogar-se a lei de igualdade salarial e as leis federais que proibiam discriminação sexual no trabalho. Edward Luttwack foi ainda mais longe: propôs que os políticos considerassem a possibilidade de resgate das iniciativas pró-maternidade e antiaborto utilizadas pelo governo francês em Vichy, ocupada pelos alemães, na época da Segunda Guerra Mundial. E num seminário patrocinado pelo Instituto Hoover da Universidade de Stanford, os oradores deploraram “a independência das mulheres” que levava à queda do índice de natalidade e acusaram as mulheres que não queriam ter muitos filhos de serem desprovidas de “valores”. Estes homens estavam tão afoitos em evitar que jovens solteiras negras procriassem quanto em convencer as brancas casadas a fazê-lo. O índice de nascimentos ilegítimos entre mulheres negras, principalmente adolescentes, estava alcançando proporções “epidêmicas”, viviam repetindo os cientistas sociais conservadores em conferências e entrevistas à imprensa. O uso da metáfora da doença por parte dos defensores da plena natalidade é involuntariamente revelador: eles consideravam “epidemia” o fato de as mulheres brancas não procriarem, assim como era “epidemia”, para eles, o fato de as negras o fazerem. No caso das mulheres negras, as advertências eram simplesmente sem fundamento. Os nascimentos ilegítimos entre adolescentes e mulheres negras estavam com efeito diminuindo nos anos 80; o único aumento de nascimentos fora do vínculo matrimonial acontecia entre as mulheres brancas. Os teóricos da escassez de nascimentos tinham razão ao afirmarem que as mulheres haviam escolhido limitar o tamanho das suas famílias. Estavam entretanto errados ao afirmarem que esta restrição reprodutiva havia provocado uma perigosa queda no índice de natalidade da nação. A fertilidade baixara de 3,8 filhos para cada mulher em 1957 para 1,8 na década de 1980. Acontece, porém, que o pique de 1957 foi uma aberração. O índice nacional de fertilidade tem mantido uma queda gradual ao longo dos últimos séculos; a década de 1980 simplesmente marcou uma volta ao status quo. E além do mais, nos anos 80 a taxa de fertilidade nem chegou a baixar; manteve-se estável em 1,8 filho para cada mulher — exatamente onde estava desde 1976. E a população estava crescendo em mais de dois milhões de pessoas por ano — o mais rápido crescimento de qualquer país industrializado.

A GRANDE DEPRESSÃO FEMININA: MULHERES À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS

Segundo a cartilha do backlash, havia dois tipos de mulheres particularmente sujeitas a um colapso nervoso: as solteiras e as profissionais bemsucedidas. De acordo com dezenas de artigos, manuais de psicologia barata e livros sobre a saúde da mulher, as solteiras estavam como nunca sujeitas a crises depressivas, enquanto as profissionais “entravam em curto” — uma síndrome que supostamente causava um amplo leque de doenças físicas e mentais, desde tonturas até ataques cardíacos. Em meados dos anos 80, várias pesquisas epidemiológicas sobre saúde mental tinham notado um aumento da depressão mental entre as mulheres da geração do baby-boom, um fenômeno que logo inspirou os escritores de psicologia popular a apelidar a época de “Era da Melancolia”. Em busca de uma explicação para a tristeza da geração, médicos e jornalistas caíram rapidamente em cima do movimento feminista. Se as mulheres nascidas no pósguerra não tivessem conseguido a sua independência, foram logo dizendo, as solteiras estariam agora casadas e as profissionais estariam em casa com os filhos — sentindo-se, em ambos os casos, mais calmas, saudáveis e ajustadas. A crescente angústia mental das mulheres solteiras “é um fenômeno tipicamente desta época”, afirmou a psicóloga Annette Baran num artigo publicado em 1986 no Los Angeles Times. “Sou levada a pensar”, disse, que as solteiras representam atualmente “a maioria das pacientes de qualquer prática psicoterápica”, precisamente “66%”, na sua avaliação. O autor do artigo concordou com ela, definindo o “número crescente” de mulheres solteiras passando por aflições psicológicas como “uma espécie de epidemia”. Um artigo de 1988, em New York Woman, dava o mesmo veredicto: as mulheres solteiras tinham “invadido” os consultórios dos terapeutas, “uma verdadeira epidemia”. As revistas citavam a psicóloga Janice Lieberman, que dizia: “Estas mulheres procuram um tratamento pois têm certeza de que algo profundamente errado está acontecendo com elas.” E assegurava: “Continuar solteira por muito tempo é traumático.” Na verdade, ninguém sabia se as mulheres solteiras estavam mais ou menos deprimidas no anos 80; nenhum estudo epidemiológico tinha realmente detectado mudanças na saúde mental das solteiras. Como notara a psicóloga e pesquisadora Lynn L. Gigy, uma das poucas na sua profissão a se dedicar às mulheres solteiras, a ciência social ainda trata as mulheres nãocasadas como “desvios estatísticos”. Elas têm sido “praticamente ignoradas na pesquisa e na teoria social”. Mas a falta de dados não desencorajou os “especialistas”, que têm culpado as mulheres solteiras de elevarem os índices das doenças mentais pelo menos desde o século XIX, quando os principais psiquiatras descreviam a típica vítima de neurastenia como “uma mulher, geralmente solteira ou de alguma forma incapacitada para desempenhar a sua função reprodutiva”. Na verdade, os cientistas sociais só conseguiram estabelecer um fato acerca da saúde mental da mulher: o trabalho fora de casa ajuda a melhorá- la. A pesquisa “Lifeprints”, de 1983, descobriu nas parcas perspectivas de emprego, e não de casamento, a principal causa de aflição mental das mulheres solteiras. Pesquisadores do Instituto de Pesquisas Sociais e do Centro de Estatísticas de Saúde, examinando os dados referentes à saúde da mulher ao longo de duas décadas, chegaram às mesmas conclusões: “Dos três fatores que examinamos (emprego, casamento e filhos), o emprego é de longe o mais estreitamente ligado à boa saúde da mulher.” As solteiras que trabalhavam, eles descobriram, estavam numa forma física e mental muito melhor do que as casadas, com ou sem filhos, que ficavam em casa. Finalmente, numa rara pesquisa extensiva que tratava as solteiras como uma categoria, as cientistas Pauline Sears e Ann Barbee descobriram que das mulheres examinadas, as solteiras eram as que demonstravam a maior satisfação com a sua própria vida — e as solteiras que tinham trabalhado a vida toda eram as mais satisfeitas de todas. Embora os demógrafos continuem sem delinear mudanças históricas no status psicológico das solteiras, eles já reuniram uma grande quantidade de dados comparando a saúde mental das mulheres casadas e solteiras. Nenhum deles sustenta a tese pela qual as solteiras seriam responsáveis pela “Era da Melancolia”: todas as pesquisas mostram que a mulher solteira goza de uma saúde mental muito melhor do que a casada (e que, num fenômeno de alguma forma relacionado, ganha mais). A advertência feita em 1972 pela soció- loga da família, Jessie Bernard, continua válida: “O casamento pode ser prejudicial à saúde da mulher.” Há muitos indicadores psicológicos, e todos eles apontam na mesma direção. Nestas pesquisas as mulheres casadas acusam cerca de 20% mais depressões do que as solteiras, com um índice três vezes maior de neuroses graves. As casadas têm mais esgotamentos nervosos, neurastenia, palpita- ções do coração e inércia. Outras aflições também afetam desproporcionalmente as mulheres casadas: insônia, mãos trêmulas, tonturas, pesadelos, hipocondria, passividade, agorafobia e outras fobias, insatisfação com o seu aspecto físico e invencíveis sentimentos de culpa e vergonha. Um estudo extensivo de 25 anos sobre mulheres com formação universitária descobriu que as mulheres casadas são as que têm a auto-estima mais baixa, as que se julgam menos atraentes, as mais sujeitas à solidão e as que se consideram menos competentes para qualquer tarefa — até a criação dos filhos. Um levantamento de 1980 descobriu que as solteiras são mais positivas, independentes e orgulhosas dos seus êxitos. O estudo extenso da Mills, que acompanhou as mulheres durante mais de 30 anos, revelou em 1990 que as casadas de forma “tradicional” corriam mais riscos de desenvolver doenças físicas e mentais ao longo da sua vida do que as solteiras — desde depressão a enxaqueca, desde hipertensão a colite. Um levantamento de 106 mil mulheres feito pelo Cosmopolitan descobriu que as solteiras não só ganham mais do que as casadas, como também gozam de mais saúde e têm mais chances de fazer sexo com regularidade. Finalmente, quando os conhecidos pesquisadores de saúde mental Gerald Klerman e Myrna Weissman examinaram toda a literatura sobre a depressão feminina e testaram fatores que iam dos genéticos até pílulas anticoncepcionais, só encontraram duas causas sérias de depressão: baixo nível social e casamento. Se as mulheres solteiras mentalmente desequilibradas não causavam a “Era da Melancolia”, será então que as responsáveis por ela eram as profissionais estressadas? Uma vez que o emprego colabora com a saúde mental das mulheres, isto parece altamente improvável. Mas os especialistas em “desequilíbrios mentais” estavam decididos e não iriam deixar por menos. “As mulheres que entraram em parafuso se tornaram um padrão da nossa cultura”, advertiam os psicólogos Herbert Freudenberger e Gail North em Women ‘s Burnout, um dos muitos livros sobre o assunto a chegarem às estantes das livrarias na década. “Ouço cada vez mais falar em mulheres que chegam à beira de um colapso físico e/ou psicológico”, escreveu Marjorie Hansen Shaevitz em The Superwoman Syndrome. “Um número surpreendente de mulheres com altos cargos executivos circula levando na bolsa seus tranqüilizantes”, informou aos leitores de Savvy o Dr. Daniel Crane. Como advertiu The Type E Woman: “As mulheres que trabalham estão engrossando as fileiras epidemiológicas dos casos de úlcera, ingestão exagerada de drogas e de álcool, depressão, disfunções sexuais e de um leque de males físicos induzidos pelo estresse, inclusive dor nas costas, dor de cabeça, alergias e recorrentes infecções virais e gripe.” Mas isto não é tudo. Outros especialistas acrescentaram à lista ataques cardíacos, apoplexia, hipertensão, esgotamento nervoso, suicídio e câncer. “As mulheres estão se liberando para morrer como homens”, afirmava o Dr. James Lynch, autor de vários livros sobre estresse, apontando para aquilo que ele denunciava como sendo um aumento nos índices de fumo, bebida, doenças do coração e suicídio entre as mulheres executivas. Os especialistas não mostravam evidência alguma, só casos curiosos — e periódicas bordoadas contra o feminismo. “O movimento feminista come- çou tudo” com “a invasão em larga escala” do mercado de trabalho, afirmava Women Under Stress, e agora muitas mulheres desiludidas estão descobrindo que “talvez a recompensa não valha o preço pago em estresse”. Os autores alertavam: “Às vezes as mulheres se deixam levar a tal ponto pelo movimento feminista que acabam aceitando empregos para os quais não estão qualificadas.” A mensagem por trás destes “conselhos” todos? Voltem para casa. “Embora ser dona-de-casa em tempo integral também provoque estresse”, escreveu Geórgia Witkin-Lanoil em The Female Stress Syndrome, “continua sendo o lado mais fácil da moeda.” Na verdade, a evidência dos fatos — dezenas de estudos comparativos sobre mulheres que trabalham e mulheres que não trabalham — indica o caminho oposto. Sejam elas operárias ou altas executivas, as trabalhadoras experimentam menos depressão do que as donas-de-casa; e quanto mais desafiadora a carreira, melhor a saúde mental e física delas. As mulheres que nunca trabalharam são aquelas que apresentam os mais altos índices de depressão. As mulheres empregadas são menos sujeitas do que as donas-decasa aos pequenos e grandes problemas mentais — desde suicídio e esgotamento nervoso até insônia e pesadelos. São menos nervosas e passivas, demonstram menos ansiedade e tomam menos psicotrópicos do que as mulheres que ficam em casa. Segundo as conclusões de um estudo baseado em dados oficiais de pesquisas sobre a saúde nos EUA, “… a inatividade pode ser a maior geradora de estresse”. Nos anos 80 as mulheres profissionais tampouco estavam provocando um aumento nas ocorrências de enfarte e de hipertensão. Com efeito, tal aumento não existiu: as mortes por doença cardíaca caíram 43% entre as mulheres desde 1963; e a maior parte desta queda foi notada a partir de 1972, quando a participação das mulheres no mercado de trabalho tomou-se mais consistente. Da mesma forma, a hipertensão entre mulheres diminuiu desde o começo dos anos 70. Só os índices de câncer pulmonar têm subido, e esta herança não é do feminismo, mas sim da maciça campanha publicitária com que em meados deste século se procurou aliciar a mulher para o vício do fumo. A partir dos anos 70, o número de mulheres fumantes tem percentualmente diminuído. A importância do trabalho remunerado é básica e duradoura para a autoestima da mulher. Até nos anos 50, quando imperava a “mística feminina”, ao serem indagadas sobre o que lhes dava um sentido de propósito e de valor pessoal, 2/3 das mulheres casadas respondiam que era o trabalho, e só 1/3 mencionou as tarefas domésticas. Na década de 1980, 87% disseram ser o trabalho a dar-lhes satisfação pessoal e um sentido de realização. Em resumo, como conclui uma ampla pesquisa: “A saúde das mulheres é prejudicada pela baixa [o grifo é meu] participação delas na força de trabalho.” Ajudando a aumentar o acesso das mulheres a mais e melhores empregos, a campanha pelos direitos da mulher não podia deixar de ser benéfica do ponto de vista da saúde mental delas. Uma pesquisa do National Sample Survey dos EUA, feita entre 1957 e 1976, detectou uma sensível melhoria na saúde mental das mulheres, diminuindo os índices de diferença entre os sexos, quanto a distúrbios psicológicos, em quase 40%. A famosa pesquisa do Centro de Manhattan, de 1980, descobriu que o número de problemas de saúde mental feminina tinha caído de 50 a 60% desde o começo dos anos 50. O diretor do projeto, Leo Srole, concluiu que a crescente autonomia e o maior poder econômico das mulheres haviam feito a diferença. “As mudan- ças”, ele escreveu, “não são apenas coincidências casuais no desenvolvimento da história, mas sim refletem uma relação de causa e efeito entre a parcial emancipação da mulher da condição de servidão sexual do século XIX e os progressos em bem-estar subjetivo do século XX.” Se algo realmente ameaçava o bem-estar emocional das mulheres nos anos 80, este algo era o próprio antifeminismo, que trabalhava para solapar o status econômico e social das mulheres — os dois pilares em que se apoia a boa saúde mental. Segundo o que até um dos manuais de psicologia admite, “há uma relação direta entre o sexismo e o estresse feminino”. Como a atual ofensiva contra os direitos da mulher poderá afetar os índices de saúde mental feminina, entretanto, é algo que só o futuro poderá dizer. Devido ao atraso com que se levam a cabo as pesquisas epidemiológicas, levará algum tempo antes que possamos conhecer os dados reais. Quem estava, então, causando a tal “Era da Melancolia”? Em 1984, o Instituto de Saúde Mental revelou os resultados do mais abrangente levantamento de saúde mental já tentado no país, o Estudo da Bacia Epidemioló- gica, que coletou dados em cinco lugares diferentes do país, assim como no Canadá. A sua descoberta fundamental foi quase completamente ignorada pela imprensa: “Os índices gerais para todos os distúrbios em ambos os sexos são atualmente parecidos.” Historicamente as mulheres sempre superaram os homens na proporção de três para um nos casos de depressão. Os dados desse estudo, entretanto, coletados entre 1980 e 1983, mostravam que a defasagem tinha encolhido para menos de dois para um. Em alguns levantamentos, com efeito, parece que a tal defasagem nunca existiu. Em parte, a diminuição da defasagem deve-se a uma melhoria no quadro mental das mulheres em geral. Mais do que isto, porém, assinala quadro mais sombrio para os homens. Pesquisadores epidemiológicos vêm constatando um considerável aumento de distúrbios, principalmente depressivos, entre homens de 20 e 30 anos. Enquanto o nível de ansiedade feminina diminuía, o dos homens subia. Enquanto os índices de suicídio das mulheres baixavam desde 1960, os dos homens continuavam subindo. Os índices de tentativas de suicídio estavam também ficando similares, uma vez que os índices masculinos aumentavam mais rapidamente do que os femininos. Enquanto os efeitos do movimento feminista parecem não ter deprimido as mulheres, tudo indica que de fato atrapalharam muitos homens. Numa análise de três décadas de pesquisas sobre diferenças entre os sexos na saú- de mental, os cientistas sociais Ronald C. Kessler e James A. McRae Jr., do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Michigan, concluíram: “E provável que os homens estejam se estressando com o seu papel de homens mais rapidamente do que as mulheres em seu papel de mulheres.” As mudan- ças de papéis que as mulheres escolheram “estão ajudando a acabar com a defasagem entre homens e mulheres quanto à saúde mental, devido principalmente ao aumento da tensão masculina”. Enquanto a melhoria progressi- va da saúde mental das mulheres se origina nos seus cada vez mais altos índices de emprego, afirmam os pesquisadores, “o aumento da aflição entre os homens pode ser atribuído, em parte, à depressão e à perda de auto-estima relacionada à crescente tendência de as mulheres arranjarem um trabalho fora de casa”. Para muitos homens dos anos 80, este efeito foi exacerbado por outra bem conhecida ameaça à saúde mental — a perda de poder econô- mico — quando milhões de tradicionais cargos “masculinos” que geravam salários se evaporaram na reestruturação econômica. Observando as drásticas alterações na proporção de doenças mentais entre os dois sexos observá- vel em pequenas comunidades industriais, Jane Murphy, diretora de epidemiologia psiquiátrica no Hospital Geral de Massachusetts, escreveu em 1984: “Será que algumas mudanças na estrutura ocupacional da nossa sociedade criaram uma situação que, de alguma forma, beneficia mais as fêmeas do que os machos?” Na verdade, como Kessler diz numa entrevista, os pesquisadores que se concentram no lado feminino da equação da saúde mental estão provavelmente deixando de reparar no fato principal: durante os últimos trinta anos, a diferença entre os sexos [quanto às doenças mentais] está diminuindo principalmente porque os homens estão se sentindo pior.” Vários relatórios sobre saúde mental publicados nos anos 80 sustentam esta afirmação. Uma pesquisa de 1980 mostra que maridos de mulheres que trabalham registram índices de depressão mais altos do que maridos de donas-de-casa. Num estudo de 2.440 adultos feito em 1982 pelo Centro de Pesquisas da Universidade de Michigan descobriu-se que depressão e falta de confiança entre homens casados estavam estreitamente ligadas ao emprego das mulheres. Em 1986, uma análise da Pesquisa sobre a Qualidade de Emprego concluiu que “vencimentos duplos podem ser experimentados como um rebaixamento para o homem e uma promoção para a mulher”. Os maridos de mulheres que trabalham, concluíram os pesquisadores, têm mais problemas psicológicos, mais falta de confiança e depressão do que os casados com donas-de-casa. “Por trás da fachada de um igualitário estilo de vida pioneiro, há uma ansiedade entre os homens que o tempo sozinho não pode curar”, concluíram. Acontece, escreveram, “que os padrões tradicionais de virilidade continuam mais importantes, em termos de avaliação pessoal, do que a retórica contemporânea sobre igualdade entre os sexos”. Uma pesquisa sobre o estresse relacionado ao desempenho de papéis sexuais, feita em 1987 por um grupo de cientistas da Universidade de Michigan, da Universidade de Illinois e da Universidade Cornell, salienta a mesma relação e observa que o bem-estar psicológico do homem se mostra particularmente ameaçado quando a mulher trabalha. “Uma vez que pesquisas anteriores sobre as mudanças de papel concentraram-se nas mulheres negligenciando os homens”, escreveram, “este resultado sugere que tal ênfase nos desviou do caminho certo e que precisamos seriamente entender de que forma a mudança do papel feminino influi na vida e nas atitudes masculinas.” A advertência, porém, passou quase despercebida pela imprensa. Quando a Newsweek apresentou a sua matéria de capa sobre depressão, colocou na capa a foto de uma mulher tristonha — e, nas páginas internas, sete das nove pessoas mostradas também eram mulheres.

O INFERNO DAS CRECHES: FAÇA A SUA PRÓPRIA ESTATÍSTICA

As manchetes contrárias às creches praticamente berravam nos anos 80: “Mamãe, não me deixe aqui!” O que os pais não sabem das creches. As creches podem prejudicar a saúde dos seus filhos. Quando cuidar das crianças se transforma em molestar as crianças: acontece muito mais do que os pais gostariam de pensar. Os arautos da Nova Direita, obviamente, eram os mais empenhados na denúncia, chamando as creches de “Talidomida dos anos 80”. Os homens do governo tampouco mediam palavras, como aquele alto oficial do exército que proclamou: “As mulheres que trabalham e deixam as crianças em centros impessoais em vez de ficar em casa tomando conta delas estão estiolando a fibra moral da Nação.” A imprensa, mais sutilmente mas com a mesma persistência, dizia cobras e lagartos seja das mães que recorriam às creches, seja das pessoas que ficavam cuidando das crianças. Em 1984, uma matéria da Newsweek alertava contra a “epidemia” de maus-tratos contra crianças, baseada em denúncias contra alguns diretores de creches — dos quais os mais conhecidos foram absolvidos nos tribunais. Só para ter certeza de que a ameaça não deixara as mães indiferentes, duas semanas depois a Newsweek voltava à carga com uma matéria de capa que perguntava: “Qual é o preço das creches?” A foto na capa apresentava uma criança de olhos arregalados chupando o dedo. Apenas no intuito de promover edificante contraste, as oito páginas internas mostravam uma Boa Mãe — sob o título “Em casa por opção”. A ex-operadora da bolsa tinha desistido da carreira para ficar em casa com o filho e dar assistência ao marido. “Tive que reconhecer que não podia fazer tudo ao mesmo tempo”, dizia a mãe, numa atitude que a Newsweek aprovou. Tempos depois, numa edição extra dedicada à família, a Newsweek publicou mais uma matéria sobre “o lado obscuro das creches”. A reportagem aludia com insistência “às evidências cada vez mais claras de que as creches podem representar uma ameaça à saúde das crian- ças”, mas nunca chegou a apresentar tais evidências. Esta campanha foi uma das poucas que a imprensa conseguiu montar sem muita ajuda. Os pesquisadores tiveram de se esforçar para tentar encontrar alguma irregularidade nas creches. E assim a imprensa resolveu reciclar algumas “pesquisas” superadas e ignorou o resto. Na primavera de 1988, num comunicado à imprensa, o Laboratório de Pesquisas Familiares da Universidade de New Hampshire deu a conhecer o maior e mais abrangente estudo sobre abusos sexuais de crianças em creches — um estudo de três anos examinando todas as denúncias de abuso no país inteiro. Era de se esperar que, depois de tantas matérias de capa sobre esta aparente ameaça, as conclusões dos pesquisadores fossem consideradas um acontecimento importante do ponto de vista da notícia. A resposta do New York Times, no entanto, foi típica: publicou o comunicado num pequeno artigo na página de classificados. (Ironicamente, a mesma página apresentava uma matéria com destaque menor ainda, acerca de um pai no estado de Wisconsin que surrara tão brutalmente o filhinho de quatro anos que este teria de permanecer internado pelo resto da vida devido às lesões cerebrais.) Por que tão pouco interesse? A pesquisa concluíra que não havia epidemia alguma de abuso sexual em creches. Na verdade, salientava a pesquisa, se havia de fato alguma crise de abuso, esta existia em casa — onde há quase o dobro de risco de abusos sexuais do que nas creches. Em 1985 foram registrados quase 100 mil casos de crianças sexualmente molestadas por membros da família (quase sempre pais, padrastos ou irmãos mais velhos), contra cerca de 1.300 casos ocorridos nas creches. Os pesquisadores também descobriram que é muito mais provável que as crianças sejam espancadas em casa; e o abuso físico no lar tende a ser mais duradouro, grave e traumático do que qualquer violência que a criança venha a enfrentar nas creches. Em 1986, 1.500 crianças morreram devido aos maus-tratos recebidos em famí- lia. “As creches, apesar das histórias pavorosas relatadas na mídia, não são lugares de intrínseco alto risco para as crianças”, concluíram os autores da pesquisa do Laboratório de Pesquisa Familiar. “O risco de abuso não é razão suficiente para evitar as creches em geral ou para que os pais se afastem do mercado de trabalho.” Estudos ao longo dos anos 70 e 80 confirmaram que, se houve algum efeito duradouro das creches sobre as crianças, ele consistiu no fato de a criança tornar-se um tanto mais gregária e independente. As crianças das creches também parecem ser um pouco mais abertas quanto aos papéis sexuais; meninas entrevistadas nas creches mostram-se mais dispostas a pensar que as tarefas domésticas e a criação dos filhos deveriam ser a obrigação de ambos os pais. Um estudo da Academia Nacional de Ciências, em 1982, concluiu que as crianças não sofrem efeito prejudicial algum do ponto de vista do desenvolvimento escolar, social ou emocional quando a mãe trabalha. Mesmo assim, a maioria das “estatísticas” publicadas na imprensa nos anos 80 baseava-se mais em folclore do que em pesquisas. Segundo os relatos da mídia, por exemplo, acreditava-se que as doenças fossem de mais fácil contágio nas creches do que no lar. As pesquisas sérias sobre creches e doen- ças, no entanto, mostram que embora as crianças nas creches fiquem inicial- mente mais sujeitas às doenças, elas logo criam imunidade e acabam ficando menos doentes do que as que ficam em casa. A ameaça das creches ao vínculo afetivo entre mãe e filho foi mais um mito divulgado. A pesquisa, porém, oferece evidências mínimas de enfraquecimento do vínculo afetivo entre mãe e filho — e sugere que este, de qualquer maneira, acaba se beneficiando com um contato mais amplo com o mundo adulto. (Ao que parece, ninguém se importa com a eventual ameaça da creche ao vínculo afetivo com o pai.) Não dispondo de nenhuma evidência demográfica conclusiva para justificar um ataque às creches para crianças que já aprenderam a andar, os críticos das creches concentraram sua atenção nos recém-nascidos. Crianças de três anos, eles argumentaram, podem sobreviver às creches, mas os recémnascidos certamente sofreriam danos permanentes. As evidências deles, no entanto, vinham de estudos feitos na Europa, durante a guerra, em orfanatos e campos de refugiados — ambientes que nem de longe poderiam ser comparados às creches modernas, mesmo as piores. Um dos estudos mais freqüentemente citados pela imprensa nem fora conduzido em seres humanos. O psicólogo Harry Harlow descobriu que os “recém-nascidos” estão sujeitos, nas creches, a graves perturbações emocionais. Os sujeitos em questão, entretanto, eram macacos recém-nascidos. E as babás nem mesmo eram mães-macacas substitutas: os pesquisadores usavam grosseiros bonecos de arame! Finalmente, em 1986, surgiu algo em que os críticos das creches poderiam se apoiar. O psicólogo e cientista social Jay Belsky, da Universidade Estadual da Pensilvânia, um eminente defensor das creches, expressou algumas reservas quanto às creches para recém-nascidos. Até então, Belsky vinha afirmar que o seu exame da literatura médica sobre desenvolvimento infantil quase não apresentava diferenças significativas entre crianças criadas em casa e outras criadas nas creches. Porém, depois, no número de setembro de 1986 da publicação Zero to Three, Belsky afirmou que colocar uma criança numa creche por mais de 20 horas semanais apresentava um “fator de risco” que podia levar a um relacionamento “inseguro” com a mãe. A imprensa e os políticos conservadores não demoraram a se manifestar. Belsky foi logo convidado para os principais programas informativos de televisão e entrevistado dezenas de vezes por mês pela imprensa. E, para profundo constrangimento do liberal Belsky, “os conservadores me abraçavam”. Os acadêmicos de direita citavam as conclusões de Belsky. Políticos conservadores pediram o seu testemunho no Congresso nas comissões sobre creches — e ficaram furiosos quando não conseguiram arrancar dele “o que eles queriam que eu dissesse”. Belsky incluiu no seu relatório sobre as creches inúmeras restrições, advertiu firmemente que uma reação exagerada era desaconselhável e avisou que so dispunha de poucas evidências. Escreveu que “só podia ser vislumbrado de um ponto de vista circunstancial [os grifos são dele] o fato de a creche nos primeiros anos de vida poder estar relacionada com a crescente rejei- ção da mãe, possivelmente até o ponto de criar insegurança na relação afetiva”. E acrescentou: “Não posso deixar de afirmar com a maior ênfase que há evidência suficiente para levar um cientista escrupuloso a duvidar desta linha de raciocínio.” Finalmente, como gosta de lembrar, em todas as entrevistas com a imprensa insistiu nas advertências, enfatizando que os seus resultados frisavam a necessidade de maiores investimentos e melhores padrões para os centros de assistência infantil, e não queriam de modo algum contribuir para a erradicação das creches. “Eu não disse que não deveríamos ter creches”, afirmou. “Disse que precisávamos de boas creches, do ponto de vista da qualidade.” Mas suas palavras caíram em “ouvidos moucos”. E uma vez que as deturpações do seu trabalho passaram para a mídia, tornou-se impossível erradicá-las. “O que mais me surpreendeu foi o fato de os jornalistas plagiarem uns os artigos dos outros. Muito poucos entre eles tinham de fato lido o meu relatório.” O que também recebeu muito pouca atenção por parte da imprensa foi a evidência que Belsky usara para justificar a sua reavaliação. Ele focalizou a sua atenção sobre quatro pesquisas — qualquer uma das quais, como ele mesmo admitiu, “poderia ser deixada de lado por várias razões científicas”. A primeira pesquisa tratava de um centro que cuidava principalmente de mães com baixa renda que ficaram grávidas sem querer — o que tornava impossí- vel saber se as crianças estavam tendo problemas porque freqüentavam a creche ou porque tinham uma vida tão miserável em casa. Belsky disse que também dispunha de evidências da classe média, mas os autores de dois estudos fundamentais que ele usou disseram mais tarde que ele havia interpretado erroneamente os dados. Ron Haskins, psicólogo da Universidade da Carolina do Norte e autor de um destes estudos sobre os efeitos das creches na agressividade, num exemplar posterior de Zero to Three, simplesmente declarou que “os meus resultados não corroboram estas conclusões”. Para defender a sua posição, segundo a qual os recém-nascidos criados em creches poderiam tornar-se “menos submissos” quando mais velhos, Belsky citou mais uma pesquisa. Mas deixou de mencionar a posterior revisão da mesma, na qual os autores mudaram de forma bastante drástica os seus pontos de vista. Os cientistas sociais poderiam fornecer inúmeros dados para mostrar que pelo menos um membro da família americana fica mais feliz e melhor ajustado quando a mãe fica em casa e cuida das crianças. Mas esta pessoa é o pai — uma descoberta de escassa utilidade para os defensores do backlash. De qualquer forma, lá pelo fim dos anos 80 a imprensa nem estava mais que- rendo dados sérios para defender seus pontos de vista. Nesta altura o público já estava tão embebido da doutrina antifeminista que os seus porta-vozes já nem se davam ao trabalho de exibir as habituais estatísticas. Alguém precisava de provas? Todo mundo já acreditava que os mitos acerca das mulheres dos anos 80 eram verdades.

3- Os refluxos de ontem e de hoje

Um backlash contra os direitos da mulher não é nenhuma novidade na histó- ria americana. Na verdade, trata-se de um fenômeno recorrente: toda a vez que as mulheres parecem ter algum sucesso na sua marcha rumo a igualdade, surge uma inevitável geada atrapalhando o florescimento do feminismo. “O progresso dos direitos da mulher na nossa cultura, ao contrário de outros tipos de ‘progresso’, sempre foi estranhamente reversível”, observou a estudiosa de literatura americana Ann Douglas. Os historiadores nunca deixaram de se surpreender com este padrão capenga, cheio de saltos e interrupções, do feminismo americano. “Enquanto os homens prosseguem no seu desenvolvimento, construindo sobre tradições herdadas”, escreve a historiadora Dale Spender, “as mulheres ficam confinadas em ciclos de contínuos recomeços.” Na imaginação popular, entretanto, a história dos direitos da mulher é habitualmente representada como uma linha perfeitamente horizontal que, vinte anos atrás, deu uma repentina e nunca vista guinada para cima. Ignorando os muitos picos e vales atravessados a caminho da liberdade, o mapa mental do progresso da mulher americana apresenta uma grande planície de feminilidade “tradicional”, na qual as mulheres vaguearam “naturalmente” e sem nenhuma outra saída, sujeitos eternamente passivos, até aparecerem os movimentos feministas de 1970. Este mapa é, por si só, prejudicial aos direitos da mulher; apresenta a luta das mulheres pela liberdade como se fosse algo que só tivesse acontecido uma vez na história, um anômalo e até nocivo subproduto da era pós-moderna. Como a poeta e ensaísta Adrienne Rich definiu, “o que faz com que cada nova geração de feministas pareça uma anormal excrescência perdida no tempo é o cancelamento do passado histó- rico e político das mulheres”. Uma precisa representação gráfica dos progressos das mulheres na história pareceria uma espiral levemente inclinada para um lado, com seus círculos aproximando-se cada vez mais da linha da liberdade com o passar do tempo, mas — como uma curva matemática aproximando-se do infinito — nunca chegando lá. A mulher está presa nesta espiral assintótica, rodando sem fim de geração em geração, aproximando-se cada vez mais da sua meta , sem nunca chegar. Cada revolução promete ser “a revolução” que a livrará da órbita, que finalmente garantirá para ela justiça e dignidade plenas. A cada vez, porém, a curva volta atrás pouco antes da linha de chegada. A cada vez, a mulher ouve dizer que precisa esperar mais um pouco, que deve ter mais um pouco de paciência — ainda não está bem na hora de dizer a sua fala. E pior, ela pode aprender a aceitar este forçado adiamento como se fosse escolha própria e até a orgulhar-se dele. Toda vez que a espiral aproximava-se da igualdade, as mulheres acreditavam que a sua viagem estava perto do fim. “No começo deste século”, alegrava-se a sufragista Ida Husted Harper, a condição feminina “mudou completamente em quase todos os aspectos”. Não iria demorar para o país ter de abrir um Museu da Mulher, brincou a feminista Elsie Clews Parsons em 1913, só para provar “a uma incrédula posteridade que a mulher já fora considerada uma classe social à parte”. Ainda mais tarde, no fim da Segunda Guerra Mundial, uma trabalhadora da indústria siderúrgica declarava a uma pesquisa encomendada pelo governo: “A velha teoria de que o lugar da mulher é no lar já não existe. Esse tempo passou para não voltar.” Em cada um destes períodos, entretanto, as celebrações foram prematuras. Este esquema de insuflar as esperanças femininas só para despedaçá-las não é típico apenas da história americana ou dos tempos modernos. Vários tipos de backlash para acabar com os quase sempre míseros ganhos das mulheres — ou simplesmente contra o fato de as mulheres parecerem em ascensão — podem ser encontrados nas leis regulamentando a propriedade e nas penalidades para mulheres não-casadas ou sem filhos na antiga Roma, nos julgamentos por heresia das discípulas da primitiva Igreja Cristã ou na queima em massa de bruxas na Europa medieval. Na condensada história dos Estados Unidos, entretanto, estes refluxos têm aparecido com surpreendente freqüência e intensidade — e têm desenvolvido os seus mais sutis meios de persuasão. Num país onde as diferenças de classe são fracas, ou pelo menos não tão aparentes, talvez não seja assim tão surpreendente que a diferença entre os sexos chegue a ter tanta evidência e tantos ânimos acalorados. Se o homem americano não pode gabar-se de nenhum brasão ancestral com que se elevar acima das massas talvez consiga transformar o seu sexo numa espécie de pedigree. Também é tradicional, na América, o fato de mulheres bem-sucedidas colaborarem para a sua própria submissão. As primeiras européias brancas a entrar nas colônias americanas eram “esposas compradas”, embarcadas para a Virgínia e vendidas pelo pre- ço da passagem. Este contrato não tinha a conotação de servidão mas sim de escolha pois as noivas eram vendidas “com o seu próprio consentimento”. Como um perplexo Alexis de Tocqueville observou, a solteira americana do começo do século XIX parecia ter mais liberdade do que a européia, mas também mais determinação para desistir dela com casamentos coercitivos: “Podemos dizer que graças ao uso da sua liberdade ela aprendeu a entregá-la sem luta.” Esta característica tornar-se-ia particularmente vantajosa nas subseqüentes campanhas periódicas para frustrar o progresso feminino, quando as mulheres eram encorajadas a usar qualquer liberdade que de fato tinham para promover a sua própria degradação. Como a erudita Cynthia Kinnard observa no seu levantamento bibliográfico da literatura antifeminista americana, cerca de um terço dos artigos e metade dos livros e panfletos contrários à campanha dos direitos da mulher foram escritos por mão feminina. Embora possamos encontrar vestígios do backlash na época colonial, o estilo de backlash que emergiu nos anos 80 tem as suas raízes fincadas mais especificamente no século passado. A era vitoriana fez surgir os meios de comunicação de massa e o marketing de massa — duas instituições que desde então se revelaram mais eficazes na contenção das aspirações femininas do que qualquer lei coercitiva ou castigo. Elas governam com o bastão da conformidade e não da censura: afirmam representar a opinião das mulheres e não poderosos interesses dos homens. Se formos investigar o curso dos direitos da mulher desde a época vitoriana, acabamos encontrando uma espiral que provocou quatro revoluções. A luta pelos direitos da mulher ganhou força na metade do século XIX, no começo do século XX, no começo dos anos 40 e no começo dos anos 70. A cada vez, a luta provocou um backlash.

O RECORRENTE BACKLASH TIPICAMENTE AMERICANO

O “movimento feminista” de meados do século XIX, lançado na convenção dos direitos da mulher de Seneca Falls em 1848 e notoriamente articulado por Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony, exigia o direito de voto e um leque de liberdades — educação, trabalho, direitos conjugais e patrimoniais, “maternidade voluntária”, reformas na saúde e na vestimenta. Perto do fim do século, entretanto, uma contra-reação cultural esmagou os apelos femininos por justiça. As mulheres tiveram que se curvar diante de uma barragem de advertências praticamente iguais às de hoje, proferidas pelos mentores culturais da época, os acadêmicos das grandes universidades, os líderes religiosos, os especialistas médicos e os papas da imprensa. As mulheres com formação universitária de então também foram alertadas a respeito da “falta de homens”; “o excesso de jovens damas que continuam donzelas”, na linguagem da época, inspirou debates nas leis estaduais e frenéticas “pesquisas” acadêmicas. Um estudo sobre o casamento apareceu em 1895, afirmando que só 28% das mulheres formadas iriam conseguir casar. Elas também encaravam uma suposta epidemia de infertilidade — induzida, desta vez, por um conflito entre “cérebro e útero”, conforme a definição que um professor de Harvard deu em 1873 num livro que teve estrondoso sucesso. E as mulheres vitorianas que trabalhavam também foram acusadas de sofrer de um prematuro “esgotamento do sistema nervoso feminino” — perdendo a sua feminilidade em troca de um certo “hermafroditismo”. Na época, como agora, os vitorianos líderes políticos e religiosos acusaram as mulheres que adiavam a gravidez de detonarem “o suicídio da raça” que arriscava o futuro da América (branca); nas palavras do presidente Theodore Roosevelt, elas eram “criminosas contra a raça” e “objeto de desdenhoso desprezo por parte das pessoas saudáveis”. As mulheres casadas que exigiam direitos eram acusadas, na época, como agora, de provocarem “uma crise da família”. A imprensa e as igrejas se levantavam contra as feministas dizendo que elas fomentavam os índices de divórcio, e as legislaturas estaduais votaram mais de cem leis restritivas sobre o divórcio entre 1889 e 1906. A Carolina do Sul simplesmente proibiu o divórcio. E um bando de cruzados “pela pureza”, como contemporânea brigada da Nova Direita, condenara a contracepção e o aborto definindo-os como “obscenos” e tentando bani-los. Lá pelo fim do século eles conseguiram: o Congresso considerou ilegal a distribuição de anticoncepcionais e a maioria dos estados julgou o aborto criminoso — pela primeira vez na história do país. No começo da segunda década do século, as ativistas do movimento pelos direitos da mulher retomaram a luta pelo sufrágio transformando-a numa campanha política de âmbito nacional. A palavra “feminismo” entrou no vocabulário popular — até a mulher fatal do cinema mudo, Theda Bara, se dizia feminista — e dezenas de recém-fundados grupos de mulheres apressaram-se a aceitar os seus dogmas. Com a organização do Partido Nacional da Mulher, em 1916, começou uma campanha para a Emenda da Igualdade de Direitos e as trabalhadoras formaram os seus próprios sindicatos entrando em greve por salários decentes e melhores condições de trabalho. A União Internacional de Operárias do Setor de Vestuário Feminino, fundada em 1900, cresceu tão rapidamente que em 1913 já era o terceiro maior associado da Federação Americana de Sindicatos. Margaret Sanger liderou uma campanha nacional pelo controle de natalidade. E a Heterodoxy, uma espé- cie de intelligentsia feminista, começou a organizar os primeiros grupos para conscientização das mulheres. Mas assim que as mulheres conseguiram o direito de voto, quando umas tantas leis estaduais permitiram que elas fossem membros de júri e lhes garantiram igualdade salarial, outro backlash teve início. O Departamento de Guerra dos EUA, com a ajuda da Legião Americana e das Filhas da Revolução Americana, incitou uma campanha contra as líderes dos direitos da mulher. Feministas como Charlotte Perkins Gilman descobriram, de repente, que não conseguiam ver os seus escritos publicados; Jane Addams foi rotulada de “comunista” e de “séria ameaça” para a segurança nacional; Emma Goldman foi exilada. A mídia difamava as sufragistas; os editorialistas diziam nas revistas que o feminismo “era destrutivo para a felicidade da mulher”; os romances populares atacavam as “mulheres carreiristas”; os clé- rigos se insurgiam contra “os males da revolta feminina”; os pesquisadores acusavam as mulheres de incentivar o divórcio e a infertilidade; e os médicos afirmavam que o controle da natalidade estava provocando “um aumento de insanidade, tuberculose, doença de Bright, diabetes e câncer”. As jovens mulheres, informavam os jornalistas, já não agüentavam mais “toda aquela lengalenga feminista”. Os primeiros sentimentos pós-feministas não surgiram na mídia de 1980, mas na imprensa de 1920. Sob este fogo cruzado, o número de participantes das organizações feministas logo começou a decrescer, e os grupos que sobraram logo se apressaram a repudiar a Emenda da Igualdade de Direitos ou simplesmente se tornaram clubes sociais. “Exfeministas” começaram a espalhar as suas confissões. Em vez de igualdade de respeito, a nação ofereceu às mulheres o concurso de Miss America, a partir de 1920 — o mesmo ano em que as mulheres conquistaram o voto. Em vez de direitos iguais, os legisladores, os líderes sindicais e empresariais, e até alguns grupos de mulheres endossaram uma política trabalhista “paternalista”, medidas que quase sempre serviam para resguardar o emprego dos homens e negar a paridade salarial às mulheres. Os anos 20 erodiram uma década de crescimento para as mulheres profissionais; em 1930 havia menos mulheres médicas do que em 1910. Com a chegada da Depressão, uma nova rodada de leis federais e estaduais forçou a saída de milhares de mulheres das massas trabalhadoras, e as novas regras salariais institucionalizaram índices de remuneração mais baixos para as mulheres. “Em tudo quanto é lugar podemos ver que tentativas apoiadas pelo governo estão sendo feitas para atirar mais uma vez as mulheres de volta ao lamaçal de indesejável dependência do qual elas pareciam estar a ponto de emergir”, escreveu em 1933 a feminista Doris Stevens, em Equal Rights, a publicação do Partido Nacional da Mulher. “Quer nos parecer que as condi- ções pré-sufrágio podem até ser restauradas, e que o ressentimento das mulheres pelos homens pode vir a se transformar num ressentimento dos homens pelas mulheres”, observou Margaret Culkin Banning num ensaio publicado na Harper’s em 1935. Mas assim como hoje, a maioria dos observadores sustentou que as feministas estavam fechando as portas simplesmente porque a batalha havia terminado — os direitos da mulher já estavam assegurados. Como a cientista política Ethel Klein escreveu acerca dos anos 20: “O esvaziamento de interesse pelo movimento feminista foi visto como um sinal de sucesso e não de fracasso.” A espiral deu mais uma volta nos anos 40, quando a economia de guerra ofereceu milhões de empregos bem remunerados na indústria e o governo até começou a oferecer condições mínimas de assistência infantil e doméstica. As publicações do governo saudavam as trabalhadoras como verdadeiras patriotas. As mulheres fortes e decididas tornaram-se símbolos culturais; Rosie, a Rebitadora, foi enaltecida e, em 1941, surgiu a Mulher Maravilha. As mulheres aceitaram com prazer o seu novo status econômico; 5 a 6 milhões delas ingressaram na força de trabalho durante a época da guerra, 2 milhões na indústria pesada; quando a guerra acabou, elas representavam uma porcentagem recorde de 57% de todos os trabalhadores. Em levantamentos feitos pelo governo, 75% disseram que tencionavam continuar no trabalho depois da guerra — e, na geração mais nova, 88% das jovens interrogadas numa estatística de Sênior Scholastic disseram que também queriam seguir carreira. A energia política das mulheres se reanimou; as operárias invadiram os sindicatos, protestaram por salários iguais, iguais condições de aposentadoria e assistência às creches; as feministas lançaram uma nova campanha para a Emenda da Igualdade de Direitos. Desta vez, a emenda ganhou o endosso de ambos os partidos e, no decorrer da guerra, pela primeira vez desde que a emenda havia sido proposta em 1923, o Comitê Judiciário do Senado enviou-a três vezes ao Senado para votação. Numa demonstração inusitada de boa vontade legislativa, o Congresso tramitou 33 leis promovendo os direitos da mulher. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, entretanto, os esforços da indústria, do governo e da mídia convergiram para forçar o recuo das mulheres. Dois meses depois de a vitória americana ser declarada no exterior, as mulheres estavam perdendo a sua cabeça-de-ponta econômica com a demissão de 800 mil trabalhadoras da indústria aeronáutica; até o fim do ano, 2 milhões de trabalhadoras haviam sido afastadas da indústria pesada. Os empregadores ressuscitaram proibições contra o emprego de mulheres casadas ou impuseram tetos para os salários das trabalhadoras; o governo federal propôs pagar salário-desemprego somente aos homens, fechou os seus serviços de creche e defendeu o “direito” dos veteranos de ocuparem o lugar de mulheres que trabalhavam. Uma coalizão antiemenda juntou suas forças, inclusive o Women’s Bureau, 43 organizações nacionais e o Comitê Nacional de Combate à Emenda dos Direitos Desiguais. Pouco tempo depois eles acabariam com a emenda — uma sentença de morte que o New York Times exaltou no seu editorial. “A maternidade não pode ter emendas e ficamos contentes que o Senado nem tenha tentado aprová-la”, proclamou o jornal. Quando a ONU emitiu um parecer a favor da igualdade de direitos para as mulheres em 1948, de 22 países americanos, os EUA foram o único que não quis assinar. Empresários que haviam enaltecido o trabalho das mulheres durante a guerra acusavam agora as trabalhadoras de incompetência ou de “mau comportamento” — e se livravam delas em porcentagens 75% mais altas do que as dos homens. Os costumeiros especialistas encheram as livrarias com as advertências de sempre: a educação e o trabalho estavam despindo a mulher da sua feminilidade e negando-lhe o casamento e a maternidade; as mulheres sofriam de “esgotamento” e de desequilíbrio mental devido ao trabalho; as mulheres que entregavam os filhos às creches não passavam de “vaidosas mães egoístas”. Um estudo da Universidade de Cornell dizia que as solteiras com formação universitária só tinham 65% de chances de se casarem. A revista This Week advertia as leitoras com formação universitária de que “as chances de elas se tornarem solteironas eram grandes”. O feminismo era uma “grave doença” que estava transformando as mulheres modernas num desolado “sexo perdido”, alertava o guia mais famoso da época. As mulheres com personalidade independente tinham “fugido ao controle” durante a guerra, decretou o sociólogo Willard Waller. Acadêmicos e autoridades do governo concordaram que o aumento da autonomia e da agressividade das mulheres estava provocando um aumento nos índices de delinqüência juvenil e divórcio — e só poderia levar a um colapso da família. Especialistas em psicologia infantil, principalmente o Dr. Benjamin Spock, pediam que as mulheres ficassem em casa, e que as universidades oferecessem novos currí- culos para formar boas donas-de-casa. Os publicitários inverteram a sua mensagem dos tempos de guerra — a de que a mulher podia trabalhar e gozar da vida familiar — e afirmavam agora que as mulheres deviam optar pelo lar. Como descobriria mais tarde uma pesquisa sobre a imagem da mulher nas revistas de ficção do pós-guerra, a carreira para as mulheres estava sendo apresentada numa ótica mais desencorajadora do que em qualquer outra época desde o começo do século; aqueles pequenos contos representavam “o mais duro ataque contra a carreira feminina” desde 1905. Nas histórias em quadrinhos, até a Mulher Maravilha do pós-guerra não ia lá muito bem das pernas. Mais uma vez, algumas defensoras dos direitos da mulher procuraram alertar acerca dos sinais da próxima tempestade política. Em 1948, Susan B. Anthony IV salientou que parecia haver algum movimento para “desmantelar” o feminismo. Margaret Hickey, diretora do Comitê Consultivo da Mulher para a Comissão do Efetivo Militar, alertou que “uma campanha de métodos escusos e apressadas desculpas” estava afastando as mulheres dos altos e bem-pagos cargos governamentais. Porém, muitos grupos pelos direitos da mulher já estavam abandonando a própria causa. Enquanto isto, uma geração mais jovem de mulheres, perdida num cenário televisivo de jardins suburbanos e recantos familiares, vestia bem-comportados sutiãs e negava qualquer ambição pessoal. Não demorou para que a maioria das jovens universitárias proclamassem que estavam na universidade só à espera de um marido. A idade do primeiro casamento baixou para índices nunca vistos no século; o número de filhos pulou para novos recordes. A era da “mística feminina” dos anos 50 foi bem retratada, principalmente no relato de Betty Friedan de 1963. No entanto, a imagem familiar da mulher dos anos 50 nada tinha a ver com os fatos reais. Esta é uma importante observação que assume particular relevo dentro do atual refluxo antifemi- nista, cujos efeitos muitas vezes foram minimizados e considerados benéficos ou até irrelevantes uma vez que as mulheres continuam entrando no mercado de trabalho. Nos anos 50, embora as mulheres pudessem até ficar na cozinha, também aumentava a sua presença nos escritórios — numa progressão que logo superou até a participação delas no trabalho durante a guerra. E foi justamente o contínuo afluxo das mulheres ao mercado de trabalho, e não a volta ao lar, que provocou e insuflou o furor antifeminista. Foi a realidade da mulher trabalhadora que provocou a exacerbação das fantasias culturais acerca do seu papel como dona-de-casa e parceira no sexo. Como as estudiosas de literatura Sandra M. Gilbert e Susan Gubar observam acerca da época pós-guerra, “quanto mais as mulheres eram pagas para usar o cérebro, mais os homens as descreviam em romances, peças e poemas como sendo apenas corpos”. Apesar destes clichês culturais, a proporção de mulheres trabalhadoras dobrou entre 1940 e 1950, e pela primeira vez a maioria delas era casada for- çando o homem médio a encarar o fantasma da mulher trabalhadora na sua própria casa. Até no auge das demissões de mulheres no pós-guerra, elas estavam silenciosamente voltando aos seus postos de trabalho pela porta dos fundos. Enquanto 3,25 milhões de mulheres eram demitidas da indústria no primeiro ano depois da Segunda Guerra Mundial, 2,75 milhões delas ingressavam ao mesmo tempo em outros empregos administrativos com salário mais baixo. Dois anos depois da guerra, as trabalhadoras já tinham recuperado a sua posição no mercado de trabalho, e em 1952 havia mais mulheres empregadas do que no auge do esforço de guerra. Em 1955, a mulher média trabalhava até o nascimento do primeiro filho e voltava ao trabalho quando a criança começava a estudar. O backlash dos tempos da mística feminina não mandou as mulheres de volta para casa (e, com efeito, poucas trabalhadoras do setor administrativo dos tempos da guerra foram dispensadas com a chegada da paz). Em vez disto, a cultura as ridicularizava; os empregadores as discriminavam; o governo promoveu novas políticas de emprego discriminatórias em relação às mulheres; e assim aconteceu até que as próprias mulheres absorvessem a mensagem de que, se quisessem trabalhar, deveriam contentar-se com a datilografia. O número de mulheres que trabalhavam não se reduziu nos anos 50, mas a proporção das que ficavam confinadas a empregos mal remunerados aumentou, a defasagem salarial ficou mais aguda e a segregação ocupacional aumentou quando o seu número nos escalões mais altos diminuiu da metade em 1930 para 1/3 em 1960. Em outras palavras, o backlash dos anos 50 não transformou as mulheres em “felizes donas-de-casa em horário integral”; apenas as rebaixou à condição de secretárias mal pagas. As contraditórias circunstâncias das mulheres nos anos 50 — crescente participação econômica e, ao mesmo tempo, reduzido desenvolvimento cul- tural — são o paradoxo central das mulheres durante um backlash. Na virada do século, os esforços conjuntos dos reitores universitários, dos políticos e dos líderes empresariais para expulsá-las das universidades também falharam; entre 1870 e 1910 tanto a proporção de universitárias quanto a de trabalhadoras dobraram. Não podemos, portanto, avaliar um backlash na medida das perdas numéricas das mulheres no mercado de trabalho, mas sim pelo ataque contra os direitos e as oportunidades delas dentro daquele mercado, ataque que serve para deter e reprimir uma verdadeira igualdade econômica. Conforme observou um relatório da AFL-CIO sobre os direitos dos trabalhadores, em 1985, examinando os duvidosos progressos das mulheres nos anos 80: “O número de mulheres que trabalham cresceu para cerca de 50 milhões hoje, mas isto não foi acompanhado de um crescimento similar do status econômico delas.” Para entendermos por que um backlash funciona desta forma ambígua, precisamos voltar ao nosso modelo espiralado dos avanços femininos. Em qualquer momento de refluxo antifeminista, a ansiedade cultural inevitavelmente concentra-se em dois pontos de pressão da espiral, tendências demográficas que atuam como duas setas que empurram a espiral, fazendo com que ela se incline na direção dos avanços femininos, mas também se tornando os pontos de convergência do maior furor do backlash. A exigência feminina pelo trabalho remunerado é uma destas setas. A proporção de mulheres no mercado de trabalho remunerado tem crescido praticamente sem interrupção desde a era vitoriana. Numa sociedade em que a renda é a medida da força social e da autoridade, a crescente presença feminina na força de trabalho não pode deixar de amenizar a posição secundária da mulher. Mas não lhe trouxe a plena igualdade. Em vez disto, a cada volta da espiral, a cultura simplesmente redobra a sua resistência e, mesmo sem empurrar forçosamente as mulheres para a cozinha, procura tornar as horas passadas longe do fogão o mais injustas e intoleráveis possível: relegando as mulheres para os piores empregos, pagando-as com os salários mais baixos, despedindo-as primeiro e promovendo-as por último, recusando qualquer tipo de assistência aos filhos e à família, e hostilizando-as. A outra seta a pressionar a espiral do backlash, sem contudo conseguir quebrar a espiral, é o controle da mulher sobre a sua própria fertilidade — e isto, também, apresenta o mesmo paradoxo entre comportamento privado e atitudes públicas. Como Henry Adams definiu o furor contra a tendência cada vez maior de as mulheres limitarem o crescimento familiar, “a corrente superficial da opinião pública parecia puxar numa direção enquanto a silenciosa corrente oculta da ação social puxava na direção oposta”. Exceto durante a explosão populacional do pós-guerra, o número de nascimentos por núcleo familiar diminuiu gradativamente no decorrer dos últimos 100 anos. A possibilidade de limitar o tamanho da família certamente melhorou a situação da mulher, mas também inspirou campanhas sociais para regulamentar o comportamento feminino e estigmatizar as mulheres sem filhos. Em tempos de backlash, o controle da natalidade torna-se mais difícil, o aborto sofre restrições e as mulheres que recorrem a ele são tachadas de “egoístas” ou “imorais”. O movimento feminista da década de 1970 conseguiu avanços substanciais tanto no campo do emprego quanto no da fertilidade — produzindo um número histórico e inédito de políticas voltadas para a igualdade e a não-discriminação no trabalho, forçando a abertura para lucrativas profissões de elite, até então privilégio masculino, e finalmente ajudando a legalizar o aborto. E hoje, mais uma vez, a fúria das ondas do backlash abate-se mais violentamente do que nunca nestas duas praias — desmonta o aparato governamental encarregado de garantir a igualdade de oportunidades, esvaziando cruciais normas legais para as mulheres que trabalham, solapando o direito de aborto, suspendendo qualquer pesquisa sobre controle de natalidade e promulga políticas de “proteção do feto” e “direitos do feto” que fecharam o acesso das mulheres a empregos lucrativos, fazendo com que elas se submetam a invasivas operações obstétricas contra sua própria vontade, e jogaram as mães “ruins” na cadeia. O ataque contra os direitos da mulher que se desenvolveu nos anos 80 talvez seja mais notável justamente por ter conseguido passar tão despercebido. A imprensa costuma ignorar a existência cada vez mais evidente do backlash — divulgando, por outro lado, a “evidência” inventada pelo backlash. A mídia divulga dados fictícios acerca do casamento e da infertilidade que associam os avanços da mulher a recuos no matrimônio e na fertilidade, ou então publica, sem o menor sentido crítico, enganosos relatórios públicos e privados que ocultam crescentes iniqüidades e injustiças, tais como a alegação do Departamento do Trabalho de que a defasagem salarial das mulheres havia repentinamente diminuído ou o relatório do Departamento de Justiça afirmando que os índices de estupro estavam estáveis e o assédio sexual no emprego declinara. Em lugar de informações relevantes acerca da erosão política sofrida pela mulher, os meios de comunicação de massa nos deram relatos fictícios sobre uma pretensa nova tendência segundo a qual a “Nova Tradicionalista” — uma criação da Good Housekeeping — volta alegremente para o seu nicho doméstico. Era o ressurgimento do “movimento de volta ao lar” dos anos 50, ele mesmo uma criação das agências publicitárias e, por sua vez, uma reciclagem da fantasia vitoriana segundo a qual um novo “culto da vida doméstica” estava trazendo de volta ao lar rebanhos de mulheres. Não causa surpresa que esta “volta ao lar” tenha sido inventada e exaltada pelas mesmas ins- tituições que sofreram as maiores perdas financeiras com o número cada vez maior de mulheres que repudiavam o lar. Os editores de revistas femininas tradicionais, os programadores da televisão e os profissionais do mundo da moda, dos cosméticos e das utilidades domésticas tiveram papéis importantes nisso — todos eles acreditam que precisam da “passividade feminina” e da dedicação integral às tarefas domésticas para venderem as suas mercadorias. A falsa visão da mulher, veiculada pela atual cultura popular, é uma espécie de grande cortina de veludo que esconde a realidade da mulher, enquanto pretende ser seu espelho. Essa pesada cortina ocultou, de uma só vez, os ataques políticos contra os direitos da mulher, e transformou-se no inatingível modelo com o qual as mulheres deveriam se comparar, fazendo com que cada mulher duvidasse de si mesma por não conseguir atingir os padrões do modelo no espelho artificialmente criado pela mídia, em vez de duvidar da validade do próprio espelho e de procurar descobrir o que aquela enganosa superfície esconde. Com o fortalecimento do backlash, em vez de lutar contra ele e denunciar a sua força, muitos grupos feministas ou mulheres isoladas acabaram procurando se adaptar ao modelo imposto. Instituições feministas tradicionais, como o The First Women’s Bank e a Options for Women, disfarçaram suas intenções com novos nomes que soavam de forma neutra; mulheres do cenário político começaram a declarar que agora só estavam interessadas na “questão da família” e não nos direitos da mulher; e executivas formadas nas melhores universidades passaram a evitar, pelo menos em público, o rótulo de feministas. Em vez de atacar as injustiças, muitas mulheres aprenderam a conviver com elas. Em vez de ficarem revoltadas, ficaram deprimidas. Em vez de se unirem, elas se isolaram, interiorizando dores e frustrações. Este processo de acomodação à pressão do backlash, por sua vez, acarretou ganho sem precedentes para os numerosos “profissionais” que se apressaram para tirar proveito e aumentar a pressão: conselheiros e terapeutas populares, consultores sentimentais, cirurgiões plásticos e especialistas de infertilidade, todos eles encheram os bolsos com a ansiedade feminina provocada pelo backlash. Milhões de mulheres buscavam um alívio para a sua aflição, só para acabarem ouvindo o velho lero-lero com o que se aconselha as mulheres a não levantarem a voz, a controlarem suas expectativas e a se “renderem” a uma “força superior”. Quando a busca coletiva por direitos iguais bate de frente com o muro de resistência do backlash, a vida de cada mulher se desfaz em mil pedaços. O backlash não trouxe o caloroso sentimento de “intimidade familiar”, como os publicitários gostam de chamá-lo, mas sim a apavorante certeza de que agora é cada mulher por si. Tanto as jovens quanto as idosas, sejam elas ideologicamente neutras ou feministas atuantes, experimentaram a angústia deste novo isolamento — e a sensação de impotência que ele traz consigo. “Sin- to-me abandonada”, escreve uma feminista mais velha na coluna de cartas da revista Ms., “como se nós todas fôssemos sócias de um clube que de repente foi fechado.” “Não estamos zangadas, só estamos nos sentindo desamparadas”, desabafa uma jovem num debate escolar sobre a condição da mulher. A perda do espírito coletivo provou-se muito mais debilitante para as mulheres do que aquilo que é normalmente caracterizado como os pesados ônus de uma vida liberada. O senso comum convencional do backlash responsabiliza o feminismo pelo atual “esgotamento” da mulher. As mulheres puxaram a corda demais, pontificam os papas do backlash; o feminismo procurou mudar as coisas demais, e num tempo curto demais, e acabou prostrando as mulheres. O mal-estar e a insatisfação que as mulheres estão experimentando hoje em dia nada têm a ver, no entanto, com a rapidez da libera- ção, mas sim com a sua estagnação. A revolução feminista esgotou-se, deixando inúmeras mulheres desencantadas e paralisadas frente à descoberta de que seu progresso real possa ter sido, mais uma vez, impedido. Quando alguém se sente perdido, encontrar um porto seguro torna-se inevitavelmente mais urgente do que nadar contra as correntes sociais. Manter a harmonia com um homem em particular da sua vida torna-se mais fundamental para a mulher do que lutar contra a cultura masculina como um todo. Afirmar que “não se é feminista” (mesmo quando tacitamente apoia todos os temas da plataforma feminista) parece ser a estratégia mais aconselhável e segura. Nestas condições, finalmente, o impulso para corrigir as injustiças sociais não só pode tornar-se secundário, como também mudo. “Num estado de solidão”, observou a escritora feminista Susan Griffin, “a consciência da opressão permanece calada.” Nesta hora de isolamento e esmagador conformismo, esperar que cada mulher defenda bravamente a sua posição feminista seria pedir demais. “Se eu tivesse de vencer as convenções”, escreveu Virgínia Woolf, “eu deveria ter a coragem de um herói, e eu não sou herói.” Em tempos de refluxo, até uma heroína pode sair do sério, pois o clima social torna-se insustentável e a retórica dominante invade a sua casa com a lembrança dos terríveis castigos que caberão à pioneira que ousar escarnecer das convenções. Nos anos 80, todas as advertências e as ameaças acerca das “conseqüências” e “riscos” das aspirações feministas tiveram o efeito desejado. Em 1989, quase a metade das mulheres interrogadas acerca da sua condição social pelo New York Times respondeu que tinham a impressão de ter se sacrificado demais em relação ao que ganharam. O preço que a cultura tinha exigido delas em troca de avanços mínimos era simplesmente alto demais.

A CRISE DE CONFIANÇA… MAS CRISE DE QUEM?

E quando as mulheres não precisarem viver para o marido e os filhos, os homens não recearão o amor e a força das mulheres, nem precisarão da fraqueza de outro para provar a sua própria masculinidade.

BETTY FRIEDAN, The Feminine Mystique

Esta perturbadora afirmação é uma profecia que nunca se cumpriu. As feministas sempre imaginaram, otimistas, que uma vez demonstrados os méritos da sua causa, a hostilidade dos homens pelos direitos da mulher desapareceria. Ficaram sempre decepcionadas. “Acredito que homem emancipado seja um mito nascido da nossa esperança e eterna aspiração”, escreveu a feminista Doris Stevens no começo do século XX. “Houve várias realizações”, escreveu em 1935 Margaret Culkin Banning, a respeito dos direitos da mulher, “… e já se passaram alguns anos. Mas o ressentimento dos homens não desapareceu. Aumentou e tornou-se mais profundo.” Quando Anthony Astrachan completou a sua pesquisa de sete anos sobre o comportamento do homem americano nos anos 80, descobriu que somente 5 a 10% dos homens interrogados “realmente apoiam as exigências femininas de independência e igualdade”. Em 1988, o índice de Opinião do Homem Americano, um levantamento de três mil homens feito pela Gentlemen ‘s Quarterly, descobriu que menos de um quarto dos homens apoiava o movimento feminista, enquanto a maioria era a favor dos papéis tradicionais da mulher. Sessenta por cento disseram que as mulheres com filhos pequenos deveriam ficar em casa. Outros estudos a respeito da atitude masculina em relação ao movimento feminista sugerem que a parcela maior do crescimento do apoio masculino ao feminismo aconteceu na primeira metade dos anos 70, naquele breve período em que o movimento feminista estava na “moda”, e diminuiu desde então. Como observou o índice de Opinião do Homem Americano, embora nos anos 80 os homens continuassem a apoiar da boca para fora questões abstratas como a isonomia salarial das mulheres, “quando o negócio passava da justiça social para o plano pessoal, o consenso desmoronava”. Nos anos 80, como a pesquisa tornou evidente, os homens já consideravam os pequenos avanços dos direitos da mulher grandes e completos; acreditavam que as mulheres tinham feito progressos substanciais rumo à igualdade — enquanto as mulheres acreditavam que a luta apenas começara. Esta diferença de opiniões sobre a campanha pela igualdade de direitos logo geraria um abismo entre os sexos. Ao mesmo tempo que os homens deixavam de se interessar pelos assuntos feministas, as mulheres se tornavam cada vez mais envolvidas com eles. Durante a maior parte da década de 1970, não houve muita divergência de opiniões entre homens e mulheres acerca da troca de papéis entre eles, e os homens tinham até apoiado mais questões como a Emenda da Igualdade de Direitos. Mas logo que as mulheres começaram a desfiar as suas próprias crenças mais íntimas sobre seu devido lugar, seus desejos e exigências de paridade de condições e liberdade de escolha começaram a crescer exponencialmente. Nos anos 80, como demonstraram as pesquisas, elas já tinham deixado para trás os homens na defesa de praticamente todas as posições feministas. A pressão do backlash só serviu para reforçar e aumentar a diferença. Enquanto os direitos básicos e as oportunidades das mulheres ficavam cada vez mais ameaçados, principalmente no que se referia a mulheres chefes de família, as fileiras de mulheres que apoiavam um compromisso não apenas com o feminismo, mas com a justiça social engrossaram. Quer se tratasse de uma ação mais firme ou de uma ajuda federal para programas assistenciais, as mulheres estavam se tornando mais radicais e os homens mais conservadores. Isto era ainda mais evidente entre as mulheres e os homens mais jovens; foram os homens jovens que deram a Reagan seu apoio maior. (Contrariando a opinião geral, o crescimento da “juventude conservadora” no começo dos anos 80 foi principalmente um fenômeno de um só sexo.) Até entre os grupos mais liberais da geração do baby-boom, as atitudes masculinas e femininas polarizaram-se de forma dramática. Uma pesquisa feita com a geração dos baby-boomers (definida como sendo os 12 milhões que apoiam grupos de mudança social) descobriu que 60% das mulheres se consideravam “radicais” ou “muito liberais”, enquanto 60% dos homens se rotulavam “moderados” ou “conservadores”. Os entrevistadores identificaram uma causa prioritária para esta divergência: a maioria das mulheres interrogadas disse que considerava a década de 1980 “ruim” para elas (enquanto a maioria dos homens não concordou) — e receava que os próximos dez anos poderiam ser piores ainda. A divergência entre o comportamento dos homens e o das mulheres teve marcos fundamentais em 1980. Pela primeira vez na história do país, apareceu uma defasagem entre os sexos na questão dos direitos da mulher. Pela primeira vez, viu-se que os homens estavam menos dispostos do que as mulheres a apoiar a igualdade entre os sexos na política e nos negócios, menos dispostos a apoiar a Emenda da Igualdade de Direitos — e mais dispostos a dizer que preferiam a família “tradicional”, em que a mulher ficava em casa. E mais, começaram a aparecer alguns sinais reveladores de que o apoio dos homens aos direitos da mulher estaria de fato esmorecendo. Uma pesquisa de âmbito nacional descobriu que o número de homens que “acreditavam firmemente” que a família deveria ser “tradicional” — com o homem ganhando o pão e a mulher cuidando da casa — dera repentinamente um salto de quatro pontos percentuais entre 1986 e 1988, o primeiro aumento em quase uma década. (No mesmo ano, o índice caiu para as mulheres.) Uma pesquisa de opinião descobriu que a proporção de homens contrários às mudanças do papel sexual e aos demais objetivos feministas tinha subido de 48% em 1988 para 60% em 1990 — enquanto o grupo disposto a se adaptar a estas mudan- ças tinha encolhido de 52 para 40%. No fim dos anos 80, o levantamento da Pesquisa Nacional de Opinião descobriu que quase duas vezes mais mulheres do que homens achavam que uma mãe trabalhando fora poderia ser tão boa genitora quanto uma que ficasse em casa. Em 1989, enquanto a maioria das mulheres entrevistadas na pesquisa do New York Times achava que a sociedade americana não tinha mudado o bastante para permitir a igualdade da mulher, só uma minoria de homens concordou com isso. Uma boa parte deles, inclusive, dizia que o movimento feminista tinha tornado “as coisas mais difíceis em casa para os homens”. Da mesma forma que em refluxos antifeministas anteriores, o mal-estar dos homens em relação à causa feminista tinha permanecido intacto no decorrer da década — e havia até, “silenciosamente, aumentado e se aprofundado”. Se por um lado os pesquisadores podiam medir o nível da resistência masculina, por outro não podiam explicá-la. E infelizmente os nossos pesquisadores sociais jamais trataram da “questão do homem” com a mesma determinação com que sempre cuidaram do “problema da mulher”. As obras sobre masculinidade mal dariam para encher uma estante. Poderíamos deduzir, desta falta de literatura, que a masculinidade é menos complexa e trabalhosa, e que exige menos cuidados do que a feminilidade. Os estudos disponíveis sobre a condição do homem, entretanto, não asseguram tais conclusões. Muito pelo contrário, descobrem na masculinidade uma flor bastante frágil — uma orquídea de estufa precisando constantemente de nutrição e cuidados. “A transgressão dos papéis sexuais tem conseqüências mais graves para o homem do que para a mulher”, concluiu o cientista social Joseph Pleck. Como escreveu Margaret Mead: “Na América a virilidade não tem a menor definição; precisa ser mantida e recuperada todos os dias, e um elemento fundamental na definição é ganhar da mulher em qualquer jogo em que os dois sexos venham a se enfrentar”. Nada parece machucar mais as pétalas masculinas do que algumas gotas de chuva feminista — umas poucas gotas são percebidas como um aguaceiro. “O homem encara qualquer pequena perda de status, de vantagem ou de oportunidade como terrível ameaça”, escreveu William Goode, um dos muitos sociólogos a espantar-se com a estranhamente hiperbólica reação dos homens diante de minúsculos progressos dos direitos da mulher. “As mulheres tornaram-se tão fortes que a nossa independência acabou sendo perdida no lar e está agora sendo esmagada e pisoteada em público.” Assim lamentava-se Catão em 195 a.C, depois que um grupo de mulheres romanas tentou revogar uma lei que proibia ao seu sexo guiar carruagens e vestir roupas multicoloridas. No século XVI, só a possibilidade de duas damas de linhagem real ocuparem ao mesmo tempo tronos na Europa fez com que John Knox proferisse a famosa diatribe: “O Primeiro Toque dos Clarins Contra o Monstruoso Regimento de Mulheres.” Por volta do século XIX, os porta-vozes do pavor masculino já tinham aprendido a esconder os seus temores acerca da independência feminina por trás da máscara do paternalismo e da piedade. Como Edward Bok, o lendá- rio editor vitoriano do Ladie’s Home Journal e defensor da moral feminina, explicou para as suas numerosas leitoras, o sexo frágil não deve aventurar-se além da esfera familiar, porque “os seus nervos rebeldes imediata e justamente se insurgem, ‘de forma que até aqui poderás chegar, sem ir além’”. Mas não eram os nervos femininos que se rebelavam contra os esforços feministas, nem então, nem agora. Uma “crise da masculinidade” surgiu durante todos os períodos de backlash ao longo dos últimos cem anos, fiel e silenciosa companheira da ruidosa conclamação à “volta à feminilidade”. No fim do século XIX, uma série de obras desacreditando os “homens molengas” foi publicada. “A geração inteira é efeminada”, lamentava Basil Ransom, o protagonista de The Bostonians, de Henry James. “O tom masculino está desaparecendo do mundo; estamos numa época feminina, nervosa, histérica, tagarela e hipócrita… O caráter masculino… É isto que eu quero preservar, ou melhor, permitam que o diga, recuperar; e preciso dizer-lhes que não estou minimamente interessado no que poderá acontecer convosco, minhas senhoras, enquanto eu tento!” Manuais de pedagogia pregavam aos pais que enrijecessem os filhos com colchões duros e vigorosos exercícios físicos. Billy Sunday liderou o ataque clerical à religião “efeminada”, promovendo uma “Cristandade muscular” e um Jesus que não era “nenhuma carinha de anjo” mas sim “o maior lutador que já viveu”. Theodore Roosevelt advertiu acerca do perigo de se perder a “fibra de vigorosa dureza e masculinidade”. A basófia marcial tomou conta da plataforma política; na verdade, como o sociólogo Theodore Roszak escreveu acerca da “masculinidade compulsiva” que culminou na Primeira Guerra Mundial, “o período que levou à guerra de 1914 aparece nos livros de história como uma longa e ruidosa despedida de solteiros bêbados”. A crise da masculinidade voltaria a aparecer a cada backlash. A recémformada associação dos escoteiros já congregava, em 1920, 1/5 de todos os garotos americanos; a finalidade explícita do fundador era estancar a efeminação do macho americano furtando os rapazes do poderoso controle feminino. O escoteiro-chefe Ernest Thompson Seton temia que os jovens estivessem degenerando numa “cambada de fumantes com nervos à flor da pele e duvidosa vitalidade”. E novamente, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, homens de letras e observadores estavam apavorados com a redução da potência masculina. No lar, o exagerado apego à saia da mãe estava sugando os humores viris. O grande sucesso de Philip Wylie, Generation of Vipers, advertia: “Precisamos enfrentar a dinastia das mulheres imediatamente, afastá-las das nossas carteiras”, antes que o homem americano degenere no “Macho Abdicante”. Em uma edição que pretendia enfocar “A Mulher Americana”, a revista Life analisava o claudicante homem americano. Uma vez que a mulher fracassara no cumprimento de suas tarefas femininas, acusava o artigo de 1956, “o novo homem americano tende a ser passivo e irresponsável”. No mundo dos negócios, o Wall Street Journal advertia em 1949 que “as mulheres estão assumindo”. A Look lastimou o aumento do “domínio feminino”: primeiro, as mulheres tinham conseguido o controle do mercado de ações, acusava a revista, e agora estavam conquistando “cargos executivos notavelmente autoritários”. Nos anos 80, os nervos dos homens rebelaram-se mais uma vez, quando “o declínio da virilidade americana” tornou-se uma verdadeira obsessão para o clero, os escritores, os políticos e os estudiosos de qualquer matiz político, do reverendo de extrema-direita Jerry Falwell até o poeta conferencista de esquerda Robert Bly. Líderes antiaborto como Randall Terry reanimaram milhares de homens com a sua visão de um Cristo que era um vigoroso “soldado” e não um efeminado “cordeiro”. Um novo “movimento pelo homem” reuniu dezenas de milhares de seguidores num retiro “exclusivo para homens”, onde erradicaram as tendências “efeminadas” e trouxeram à tona “o selvagem que havia dentro deles”. Na imprensa, colunistas homens deploraram o aumento de “homens sensíveis”. O editor da Harpers, Lewis Lapham, defendeu a criação de clubes exclusivamente masculinos para reanimar a decrescente virilidade: “Se deixarmos afrouxar as linhas de tensão equilibrada, a estrutura toda se dissolve na lama da androginia”, ele predisse. No cinema e na televisão, filmes de ação completamente másculos encheram tanto as telas e as telinhas que o número de papéis femininos teve uma expressiva queda. Na ficção, livros de ação violentos viraram best-sellers, num renascimento do gênero que o editor dos livros de ação da Bantam Books comparou às “novelas históricas, cheias de sangue e duelos, do século XIX”. No vestuário, a crise da masculinidade reacendeu o mercado: as roupas no estilo safári estouraram nas vendas, assim, como adornos de combate e as demais variedades daquilo que a Newsweek chamou propriamente de “moda predatória”. Na política nacional, a campanha presidencial de 1988 tornou-se um concurso de testosterona. Michael Dukakis afirmava que era “durão”. George Bush, cujo “langor” preocupava a imprensa, anunciou: “Eu sou o pitbull de nossa estraté- gia de defesa.” Depois de dois anos de presidência, a metafórica bravata marcial de Bush assumiu um caráter mais literal e sangrento quando a sua administração levou o país à guerra; podemos dizer que Bush começou alardeando que iria “dar uns coices num burrinho” no seu debate com Geraldine Ferraro e acabou, como ele mesmo disse, “dando coices” na guerra do Golfo. Neste backlash assim como nos precedentes, prevaleceu uma reação exagerada e muitas vezes cômica, diante dos modestos progressos da mulher. “As mulheres estão tomando conta” é o mesmo refrão que muitas mulheres trabalhadoras costumam ouvir dos seus colegas homens — depois que uma ou duas mulheres são promovidas na empresa, embora a alta diretoria continue sendo maciçamente masculina. Nas salas de imprensa, repórteres brancos costumam queixar-se que só mulheres e representantes das minorias conseguem emprego — muitas vezes em publicações nas quais o número de mulheres e de negros está na verdade diminuindo. “Na Universidade de Colômbia”, observou a professora de literatura Carolyn Heilbrun, “ouvi muitos homens dizendo, com a maior sinceridade, que algumas mulheres à cata de isonomia salarial estavam tentando derrubar a universidade, arruiná-la.” Na Universidade de Boston, o reitor John Silber espumava ao dizer que o seu departamento de inglês se tornara num “matriarcado dos internos” — quando apenas seis dos vinte membros da faculdade eram mulheres. As feministas têm “controle total” do Pentágono, queixou-se um general-de-brigada — quando as mulheres, que nem feministas eram, representavam apenas 10% das forças armadas e ficavam quase sempre relegadas aos postos mais baixos. Mas qual é exatamente o problema da igualdade das mulheres, que só o fato de mencioná-lo ameaça acabar com a identidade masculina? Qual o problema da virilidade que, até hoje, tanto depende da “feminilidade” para a sua sobrevivência? Um pequeno dado do relatório Yankelovich, uma pesquisa que acompanhou o comportamento social durante as décadas de 1970 e 1980, dá-nos uma dica para uma possível resposta. Durante 20 anos, os pesquisadores pediram aos entrevistados que definissem masculinidade. E durante 20 anos, a definição mais comum, ganhando de longe das outras, foi a mesma. Não foi ser um líder, atleta, conquistador e nem mesmo o simples fato de “ter nascido homem”. Foi apenas isto: “ser um bom provedor para a família”. Se a afirmação da masculidade depende antes de mais nada do sucesso em ser o provedor principal na casa, fica então difícil imaginar uma força mais diretamente ameaçadora para a frágil virilidade americana do que a busca feminina pela igualdade econômica. E se sustentar a família resume o que significa ser homem, então não devemos ficar surpresos se o backlash aconteceu quando aconteceu — durante a recessão dos anos 80. Nesta época, o salário real do homem “tradicional” encolheu drasticamente (uma queda livre de 22% em núcleos familiares onde homens brancos eram os únicos arrimos de família), e o próprio provedor macho tornou-se uma espécie ameaçada de extinção (representando menos de 8% de todos os núcleos familiares). O fato de a definição de masculinidade continuar tão ligada ao aspecto econômico também ajuda a explicar por que o backlash foi principalmente defendido por dois grupos de homens: os trabalhadores da produção, solapados pela mudança para uma economia de serviços, e os últimos rebentos do baby-boom, privados da comparativa riqueza de que gozaram os pais ou os irmãos mais velhos. A década de 1980 foi ruim para a indústria, que botou na rua milhões de trabalhadores, e só 60% encontraram novos empregos — destes, quase a metade com salário menor. Foi um tempo em que, entre os homens que perdiam poder aquisitivo, quem mais perdeu foram os filhos mais jovens do baby-boom. O homem médio com menos de 30 anos estava ganhando 25 a 30% menos do que o homem do começo dos anos 70. E em pior situação estava o jovem médio com apenas o primeiro grau: não conseguia mais do que 18 mil dólares por ano, a metade do que se ganhava uma década antes. Estas perdas, inevitavelmente, gerariam outras perdas. Como observou o pesquisador Louis Harris, a polarização econômica foi a mais dramática mudança comportamental dos últimos quinze anos: um espetacular aumento de 100% na proporção de americanos que se sentiam “sem ação”. Quando os analistas da Yankelovich reexaminaram os dados comportamentais da pesquisa de 1986, tiveram que criar uma nova categoria para descrever um grande segmento da população que aparecera de repente com um conjunto de valores todo particular. Este segmento, já representando uma significativa quinta parte da amostra nacional da pesquisa, era dominado por homens com idade de 33 anos, solteiros, com poder aquisitivo cada vez mais baixo — e furiosos com isto. Eram os irmãos mais novos, e mais pobres, da geração do baby-boom, aqueles que não foram tão enaltecidos pela mídia e pela propaganda. O relatório Yankelovich deu a estes jovens revoltados o eufemístico nome de “Competidores”. Os homens que pertenciam a este grupo tinham mais um traço distintivo: temiam e deploravam o feminismo. “Estes homens malsucedidos, que não conseguem ganhar tanto quanto os seus pais, são os que se sentem mais ameaçados pelo movimento feminista”, observou a vice-presidente da Yankelovich, Susan Hayward. “Eles representam 20% das pessoas que não sabem se adaptar às mudanças no papel da mulher. Eles não têm bons empregos, são os primeiros a serem despedidos, não têm economias nem muitas expectativas em relação ao futuro.” Outros levantamentos iriam confirmar esta observação. No fim dos anos 80, o índice de Opinião do Homem Americano descobriu que o maior dos seus sete grupos demográficos era agora o dos “Contrários à Mudança”, um segmento com 24% da população, desproporcionalmente mal empregado, “ressentido”, convencido de que estava “sendo deixado para trás”, por uma sociedade em transformação, e extremamente hostil ao feminismo. Jogar toda a culpa nesses homens, entretanto, não seria justo. Os programas e as metas do backlash foram escolhidos e articulados por homens mui- to mais ricos e influentes do que os Competidores, homens no comando da mídia, dos negócios e da política. Os mais pobres e menos educados foram apenas os destinatários, não os criadores das teses antifeministas. Sendo os mais vulneráveis à mensagem, eles adotaram e retransmitiram o backlash com o maior estardalhaço. Os Competidores dominaram as fileiras da ala militante do movimento contra o aborto, a lista dos queixosos nos processos por discriminação inversa e pelos “direitos dos homens”, os cada vez mais volumosos arquivos policiais de estupradores e molestadores sexuais. São homens como Charles Stuart, um vendedor de peles de Boston que assassinou a mulher grávida, advogada, pois temia que ela — mais instruída, melhor de vida — estivesse “levando a melhor”. São homens sem perspectivas como Yusef Salaam, um dos seis acusados de estuprar e matar uma profissional que corria no Central Park; como mais tarde ele narrou à corte, sentia-se “um rato, muito menos que um homem”. Homens como Marc Lepine, um mecâ- nico desempregado de 25 anos que matou a tiros 14 mulheres numa sala de aula na Universidade de Montreal porque elas não passavam de “um bando de putas feministas”. As vítimas da economia da época são homens que sabem que alguém deu um jeito de estragar o seu futuro — e suspeitam que este alguém seja uma mulher. Nunca isto pareceu ser tão verdadeiro como no início dos anos 80, quando, pela primeira vez, as mulheres superaram os homens em número de novas contribuições para o mercado de trabalho e quando, durante algum tempo, o desemprego masculino ficou bem maior do que o feminino. O começo dos anos 80 proporcionou um gatilho não só político, mas também econômico, para o backlash. Era um momento de simbólicas encruzilhadas para homens e mulheres: a primeira vez que os homens brancos se tornavam menos da metade da força de trabalho, a primeira vez que não havia disponibilidade de novos empregos na indústria, a primeira vez que mais mulheres do que homens entravam na universidade, a primeira vez que mais de 50% das mulheres trabalhavam, a primeira vez que mais de 50% das mulheres casadas trabalhavam, a primeira vez que havia mais mulheres casadas do que solteiras trabalhando. Significativamente, 1980 foi o ano em que o Censo dos Estados Unidos parou oficialmente de definir o marido como o chefe do núcleo familiar. Para muitos dos homens que tropeçavam, certamente pareceu que haviam sido as mulheres a lhes passarem a perna. Se houve um “preço a ser pago” pela igualdade da mulher, estes homens se convenceram de que foram eles a pagá-lo. O homem da Casa Branca durante a maior parte dos anos 80 não fez muitos esforços para desencorajar este ponto de vista. “Parte do desemprego não é realmente o que se poderia chamar de recessão”, Ronald Reagan disse num discurso sobre economia em 1982, “mas sim deve-se ao grande aumento de pessoas que entram no mercado de trabalho, e — minhas senhoras, não estou implicando com ninguém mas… — deve-se ao aumento de mulheres que agora trabalham.” Na realidade, os males econômicos da década de 1980 exigiram um tributo muito mais pesado das mulheres do que dos homens. E os chamados ganhos das trabalhadoras no governo Reagan nada tiveram a ver com as perdas dos homens. Se as mulheres pareceram abocanhar mais empregos na era Reagan, que só teve 1,56% de crescimento anual do mercado de trabalho — o menor índice desde Eisenhower -, isto só aconteceu porque as mulheres tinham poucos concorrentes homens para estas novas “oportunidades” de emprego. Cerca de um terço das novas vagas estava no nível de pobreza ou abaixo dele, comparado com um quarto da década de 1970, e trabalhos “femininos” mal remunerados em lojas ou escritórios representaram 77% de todo o crescimento do mercado de trabalho nos anos 80. O chamado aumento de oferta de trabalho se deu na faixa remunerativa de 2 dólares por hora, em trabalhos que podiam ser feitos em casa com salário de fome, no setor de vendas e de lanchonetes, sem nenhum plano de assistência ou de aposentadoria. Estas não eram posições que os homens estavam perdendo para as mulheres; eram tarefas que os homens tinham desprezado e que as mulheres assumiam só por desespero — para sustentar famílias onde o homem estava ausente, desempregado ou subempregado. A economia dos anos 80 reduziu as fileiras da classe média, polarizando os extremos como nunca se vira desde que o governo começou a manter registro destes dados, em 1946. Neste clima, a única forma de uma família de classe média conseguir manter o seu nível de vida, era com dois contracheques. Os rendimentos da família teriam encolhido três vezes mais durante a década se as mulheres não tivessem entrado maciçamente no mercado de trabalho. E este fato foi o golpe final no orgulho e na identidade dos homens: não só o homem de classe média já não conseguia mais suprir as necessidades da família, como também a pessoa que lhe dava uma mão era a mulher que ele acreditava dever sustentar. Para estes homens amargurados, as verdadeiras causas da polarização econômica pareciam remotas e intangíveis: aquisições alavancadas que geravam desemprego; um boom especulativo que desmoronou com a derrubada das ações na Segunda-feira Negra de 1987; o crescente deslocamento da produção para o exterior e a automatização; a perda de poder por parte dos sindicatos; os maciços cortes de Reagan nos gastos com a assistência aos pobres e as reduções nos impostos para os ricos; um salário mínimo que colocava uma família de quatro pessoas no nível da pobreza; os custos insustentáveis de moradia consumindo quase a metade da renda de um trabalhador médio. Vale a pena notar que, em sua maioria, estas condições reprisaram circunstâncias econômicas enfrentadas pelos trabalhadores durante precedentes épocas de backlash: a grande especulação financeira levou ao pânico de 1893 e à quebra de 1929; durante os backlashes do fim do século XIX e da época da Depressão, os assalariados também sofreram com as repetidas fusões de empresas, os sindicatos se enfraqueceram e a riqueza se concentrou nas mãos de muito poucos. Quando o inimigo não tem rosto, a sociedade inventa um. Toda a ansiedade por causa da perda do poder aquisitivo, da insegurança no trabalho e das despesas absurdas da moradia precisa de um bode expiatório, e nos anos 80 descobriu-se que o bode expiatório podia ser a mulher. “Deve haver um motivo mais profundo [para o materialismo da década] além de Reagan e de Wall Street”, escreveu no New York Times Magazine um ex-editor de jornal — e aí concluía: “O movimento feminista deve ter tido um papel fundamental.” Procurando crucificar alguém pelos excessos de Wall Street em 1980, a imprensa e o público em geral logo escolheram algumas mulheres da Bolsa apesar de esta profissão ser eminentemente masculina. Quando o New York Times Magazine decidiu condenar a avidez dos corretores e dos banqueiros de investimentos, a publicação reservou os ataques mais violentos para uma personagem de importância relativa: Karen Valenstein, vice-presidente da E. F. Hutton e uma das mulheres “proeminentes” da Bolsa de Valores. (Na verdade, ela era tão pouco importante que nem chegava a chefiar um departamento.) O artigo da revista, que era bastante crítico a respeito do seu suposto fracasso como mulher e como mãe, provocou uma onda de revolta contra ela em Wall Street e em outros jornais (o New York Daily News chegou a fazer uma pesquisa sobre a impopularidade dela), e ela acabou sendo despedida, definitivamente cortada de Wall Street, e teve que sair da cidade. E ainda mais, na hora de descarregar a fúria popular contra os poderosos da década, Leona Helmsley foi a figura mais maldosamente pichada e vituperada. Apelidada de “Bruxa Má do Oeste” e de “prostituta” por políticos e multidões enfurecidas, foi crucificada numa matéria de capa da Newsweek e declarada “uma vergonha para a humanidade” (imagine só, logo pelo ricaço dos hotéis Donald Trump). Enquanto isto, Michael Milken, cujas multibilionárias manipulações tornavam uma piada a comparativamente pequena evasão fiscal de Helmsley, recebia anúncios aduladores de página inteira pagos por seus admiradores, tratamento privilegiado em revistas como Vanity Fair e até elogios por parte do líder dos direitos humanos Jesse Jackson. Para alguns grandes figurões em apuros, as mulheres, principalmente as feministas, tornaram-se bodes expiatórios de mil e uma utilidades — acusadas de crimes que às vezes chegavam às raias do absurdo. Cercados por corrup- ção e negociatas com vendas de armas, os chefões militares atribuíam os problemas do Departamento de Defesa às feministas que estavam tentando “diminuir a eficiência de combate” e à “efeminação do militar americano”; oficiais superiores advertiram o Pentágono que a gravidez entre as oficiais — uma condição que sempre afetou menos de 1% do total das alistadas — era o “maior problema” das forças armadas. O major Marion Barry culpou uma “puta” por ele haver caído em desgraça com a cocaína — e um dos seus defensores mais ativos, o escritor Ishmael Reed, foi ainda mais longe, apresentando a história toda numa peça teatral como sendo uma conspiração feminista. 0 advogado de Joel Steinberg afirmou que o conhecido espancador de crian- ças havia sido destruído por “feministas histéricas”. E até o coronel Oliver North responsabilizou “um arrogante exército de feministas ultramilitantes” pelos seus problemas legais no caso Irã-Contra.

A NATUREZA DO BACKLASH DE HOJE

Quando a sociedade projeta os seus medos numa forma feminina, pode tentar manter à distância estes medos controlando as mulheres — forçando-as a se conformarem com reconfortantes padrões nostálgicos e reduzindo-as, na imaginação cultural, a um tamanho manuseável. Exigir que as mulheres “voltem à feminilidade” é o mesmo que pedir que os mecanismos culturais engatem a marcha a ré, que todos nós voltemos a um tempo fabuloso, quando todo mundo era mais rico, mais jovem, mais vigoroso. A mulher “feminina” é algo eternamente estático e infantil. Ela se parece com a bailarina numa antiga caixinha de música, de imutáveis traços delicados e pueris, voz tilintante, corpo preso num pino, rodando numa espiral que nunca vai mudar. Em tempos de backlash imagens de mulheres coagidas povoam os museus da cultura popular. Podemos vê-las silenciadas, infantilizadas, imobilizadas ou, no nível mais alto da repressão, mortas. A mulher torna-se uma congelada figura doméstica, uma paciente acamada, um anônimo corpo imó- vel. Ela é a mulher comatosa que aparece nos anúncios do Opium e de muitos outros perfumes dos anos 80. Ela é Laura Palmer, a mulher morta em Twin Peaks, que a Esquire escolheu para a capa do exemplar dedicado às “Mulheres que amamos”. Embora tenha havido alguns casos — Murphy Brown na TV ou, de certa forma, Madonna na música — em que uma figura feminina agressiva e determinada conseguiu enfrentar com sucesso a opinião pública corrente, eles continuam sendo exceções. Via de regra, mulheres sem papas na língua têm sido caladas na tela e no palco ou, como no caso de Roseanne Barr, publicamente censuradas — reservando-se o aplauso para as suas mais complacentes e sussurrantes irmãs. Nos últimos dez anos, a mídia, o cinema, a indústria da moda e dos cosméticos têm unanimemente louvado a modesta e recatada mulher-menina — uma “lady” neovitoriana de rosto pálido, uma criaturazinha delicada que fica em casa, fala baixinho e apara as próprias asas vestindo roupas restritivas. Tudo o que lhe acontece, pelo menos na cultura estabelecida, é mostrado como sendo “escolha” dela; o que importa é que ela não só use corpetes que lhe apertam as costelas, como também que puxe os cordões sozinha. A mulher reprimida do atual backlash distingue-se das suas predecessoras pois quer fazer parecer que escolhe a sua condição duas vezes — primeiro como mulher e segundo como feminista. A cultura vitoriana definia “feminilidade” como sendo aquilo que “uma verdadeira mulher” deseja; na estratégia de mercado da cultura contemporânea, também é o que uma mulher “liberada” almeja. Da mesma forma que Reagan assumiu ares populistas para vender um programa político que favorecia os ricos, os políticos, os meios de comunicação e a publicidade adotaram uma retórica feminista para passar adiante políticas que feriam a mulher, revendendo os mesmos velhos produtos de sempre ou escondiam opiniões antifeministas. Bush prometeu “maior poder” para as mulheres pobres — como substituto dos muitos programas de assistência social que ele estava cortando. Até a Playboy afirmou estar do lado do progresso feminino. “As mulheres avançaram tanto”, garantiu o porta-voz da revista à imprensa, “que já não é um estigma posar nua.” A cultura dos anos 80 suprimiu o discurso político das mulheres e depois redirecionou sua auto-expressão para os shopping centers. A consumidora passiva foi reeditada como sucedâneo feminista, exercendo o seu “direito” de comprar produtos, fazendo as suas próprias “escolhas” ao chegar no caixa. “Você pode ter tudo”, prometia um anúncio de cerveja a uma jovem em malha de ginástica — mas por “tudo”, a cervejaria queria dizer que o seu produto não dava a barriguinha de chope. Criticado por dirigir-se a jovens mulheres nos seus anúncios, um indignado vice-presidente da Philip Morris esbravejou que este tipo de censura é “sexualmente discriminatório” pois sugere que “mulheres adultas não têm capacidade para tomar as suas pró- prias decisões de fumar ou não”. A reivindicação feminista exortando que cada uma siga os próprios instintos tornou-se um apelo publicitário para se obedecer às solicitações do mercado — um apelo que enfraqueceu e aviltou a busca feminina de uma verdadeira autodeterminação. Fazendo com que as mulheres voltassem a se ver na condição de devotadas compradoras, a década obcecada pelo consumo conseguiu minar um dos princípios mestres do feminismo: fazer com que as mulheres pensem por conta própria. Como Christopher Lasch (que em breve lançaria as suas próprias granadas verbais contra o feminismo) observou em A cultura do narcisismo, o consumismo mina os avanços das mulheres da forma mais nociva, quando “parece estar do lado das mulheres contra a opressão masculina”. A indústria da propaganda estimula assim a pseudo-emancipação das mulheres, bajulando-as com o seu insinuante refrão “Você já foi longe, menina” e disfarçando a liberdade de consumo sob a máscara de verdadeira autonomia… No entanto, só emancipa mulheres e crianças da autoridade patriarcal para sujeitá-las ao novo paternalismo da indústria da propaganda, das grandes corporações e do Estado. O atual contra-ataque aos direitos da mulher proporciona ainda outra tática inerente aos livros de estratégia dos antigos contra-ataques: a pose de uma sofisticada e irônica distância dos seus próprios fins destrutivos. A lista de emoções falsas do backlash — piedade pelas mulheres solteiras, preocupa- ção com o esgotamento das que trabalham, envolvimento com os problemas da família -, a ofensiva atual acrescenta um escarnecedor cinismo em rela- ção a quem ousa apontar mensagens discriminatórias ou antifemininas. Na era do entretenimento e da propaganda, destinados e criados pela geração pós-guerra, o elenco dos protagonistas conscientes nos dá constantemente a entender que eles sabem que a sua representação das mulheres é retrógrada e aviltante, mas, e daí? “Acho que estamos revivendo ‘Papai sabe tudo’”, brincam os personagens da televisão, como se a condição secundária da mulher tivesse se transformado, a longo prazo, numa engraçada piada. Ficar falando de injustiça sexual não só é feminino, mas não pega bem porque já não está com nada. A revolta das mulheres, assim, como qualquer outro tipo de revolta social, é alegremente descartada — e não por falta de conteúdo, mas simplesmente por falta de “classe”. Já é bastante difícil desmascarar sentimentos antifeministas quando eles se vestem com roupas feministas. Mas é muito mais difícil enfrentar um inimigo que diz não se importar. O feminismo “cheira tanto a anos 70”, afirmam com tédio os papas da cultura popular. Agora somos “pós-feministas”, informam, não para dizer que a mulher chegou à igualdade de direitos e ultrapassou essa fase, mas para sugerir que eles mesmos se adiantaram tanto que já não pretendem nem mesmo importar-se com o assunto. É uma falta de compromisso que, no fim, pode representar o golpe mais devastador contra os direitos da mulher.

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