"Fui instruído a cancelar a exposição!" Até na Nova York pós Trump a regra para Gosine é outra.

Sara Wagner York
10 min readMar 7, 2025

--

Nos últimos anos, a censura a exposições artísticas e produções culturais tem se intensificado globalmente, atingindo especialmente trabalhos que abordam questões de gênero, sexualidade e decolonialidade. No Brasil, um dos casos mais emblemáticos foi o da exposição Queermuseu — Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, que foi abruptamente encerrada em 2017 após pressões de grupos conservadores. A mostra, que reunia obras de artistas brasileiros explorando temas da diversidade e identidade queer, foi acusada de imoralidade e sofreu ataques que evidenciaram um crescente movimento de censura e repressão contra a arte dissidente. Esse episódio ressoa com situações vividas por artistas em diferentes contextos, como o caso recente do cancelamento da exposição de Andil Gosine no Art Museum of the Americas, nos Estados Unidos.

Andil Gosine, artista e acadêmico de Trinidad e Canadá, explora as interseções entre colonialismo, sexualidade, meio ambiente e direito no contexto caribenho. Seu trabalho investiga como as leis coloniais e as normas sociais impostas moldaram não apenas as relações humanas com a natureza, mas também reprimiram identidades queer e não heteronormativas na região. Seu livro Nature’s Wild: Love, Sex, and Law in the Caribbean apresenta uma narrativa envolvente, combinando histórias pessoais e culturais com análises acadêmicas. Nele, Gosine desafia os legados coloniais presentes tanto nas políticas ambientais quanto nas leis sobre sexualidade, propondo uma reconexão com o conhecimento e as tradições locais como caminho para a libertação.

Além de seu trabalho acadêmico, sua arte visual (The Art of Andil Gosine) aborda temas como identidade, diáspora e pertencimento. Utilizando fotografia, mídias diversas e instalações, sua obra questiona as narrativas dominantes sobre o Caribe e suas comunidades LGBTQ+. Adotando uma perspectiva decolonial, Gosine defende a desconstrução dos sistemas opressores e a celebração da diversidade cultural e sexual caribenha. Um de seus projetos mais notáveis, Nature’s Wild, foi uma exposição solo que reformulou o modelo convencional ao posicioná-lo como curador de obras colaborativas.

Em um contexto onde vozes dissidentes são constantemente ameaçadas por estruturas políticas e sociais conservadoras, torna-se fundamental entender como artistas e acadêmicos podem resistir a essas formas de censura. A seguir, reproduzo minha conversa com Andil Gosine, na qual discutimos o cancelamento de sua exposição, as consequências desse episódio para artistas queer e racializados, e as estratégias para continuar produzindo arte e conhecimento em tempos de repressão.

Artist, writer and scholar, Dr Andil Gosine. Photo by Catherine Sforza. -

Além de seu trabalho acadêmico, sua arte visual (The Art of Andil Gosine) aborda temas como identidade, diáspora e pertencimento. Utilizando fotografia, mídias diversas e instalações, sua obra questiona as narrativas dominantes sobre o Caribe e suas comunidades LGBTQ+. Adotando uma perspectiva decolonial, Gosine defende a desconstrução dos sistemas opressores e a celebração da diversidade cultural e sexual caribenha. Um de seus projetos mais notáveis, Nature’s Wild, foi uma exposição solo que reformulou o modelo convencional ao posicioná-lo como curador de obras colaborativas.

Em março, publicamos um artigo sobre a censura imposta pelo governo Trump às políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) https://www.brasil247.com/blog/o-colapso-da-pesquisa-cientifica-um-olhar-sobre-a-censura-nos-eua-e-no-brasil. Desde então, muitas dúvidas e histórias emergiram. A partir da colaboração do Prof. Dr. Fabio Oliveira, decidi entrevistar o Prof. Dr. Andil Gosine, cujo trabalho investiga a relação entre colonização e natureza. Nossa conversa abordou sua recente exposição em Nova York, que foi cancelada devido às políticas trumpistas. A seguir, reproduzo nossa conversa:

Como você recebeu a notícia sobre o cancelamento de sua exposição no Art Museum of the Americas?

Estava na cama na manhã de 5 de fevereiro, com pneumonia, quando a Diretora do Museu me ligou. Eu não conseguia falar, então não atendi. Ela enviou uma mensagem dizendo que precisava falar comigo imediatamente. Quando retornei a ligação, ela me deu a notícia: fui instruído a cancelar a exposição.

O que isso representa para artistas e acadêmicos queer e racializados no contexto atual?

São tempos assustadores. Esse cancelamento é um exemplo claro das medidas tomadas contra aqueles que não se conformam com a mudança política em curso. Vale ressaltar que nunca usei categorias raciais ou de gênero para definir minha exposição. Pelo que entendi, foi assim que ela foi rotulada internamente: “a exposição queer canadense”. Mas apenas metade dos artistas era queer, e alguns eram brancos. O que todos compartilhavam era o fato de serem colaboradores — queer e não queer, homens e mulheres, indígenas, afro-caribenhos, canadenses brancos, indo-caribenhos, etc. Eu gostava do trabalho deles e acreditava que juntos poderíamos criar algo significativo.

Você vê essa decisão como parte de um movimento maior para suprimir vozes dissidentes?

Regimes ideológicos sempre tentam silenciar vozes dissidentes, pois elas atrapalham seus planos. As elites poderosas sabem o quanto a arte é fundamental e transformadora, e é por isso que tentam controlar o que os artistas expressam.

Seu trabalho frequentemente aborda colonialismo, ecologia e sexualidade. Você esperava esse tipo de reação em 2025?

De forma alguma. Escolhi trabalhar com o Art Museum of the Americas porque sabia que teria total controle sobre minha visão. Até o momento do cancelamento, a Diretora do Museu nunca questionou nenhuma peça ou ideia minha. Ela sempre apoiou minha independência.

Como os governos e as instituições estão tentando controlar a arte e os discursos dissidentes hoje?

Isso levará tempo para ser documentado e analisado, mas precisamos começar. Se eu não tivesse uma formação em política internacional ou experiência com organizações globais, será que essa história teria vindo à tona? A maioria dos jornalistas de arte que cobriu a história inicialmente sequer sabia o que era a Organização dos Estados Americanos. Precisamos mapear as especificidades de cada caso, sem cair em simplificações como “culpar Trump”. Isso é muito maior do que um homem.

Qual o impacto dessa censura na produção artística e acadêmica de indivíduos queer e racializados?

Essas ações criam um efeito paralisante, levando muitos a temerem por suas carreiras. Quando recebi uma plataforma para expor o que aconteceu, procurei outras pessoas para compartilhar esse espaço, mas ninguém aceitou. O medo é real e paralisante.

Seu livro Nature’s Wild explora as interseções entre colonialismo, sexualidade e meio ambiente. Como essas questões se conectam ao momento atual?

É impressionante como muitos dos temas do livro são relevantes para entender o presente. A questão central do livro é que os seres humanos precisam refletir sobre o esforço que fazem para fingir que não são animais e como essa negação da animalidade nos prejudica. Acho que Donald Trump compreende a condição humana e animal em toda sua complexidade — incluindo seus aspectos mais sombrios — melhor do que muitos progressistas, que ainda insistem em abordagens políticas ingênuas e moralistas. Estamos vendo humanos agindo com instintos básicos — se fechando, se protegendo, sendo tribais. Precisamos enfrentar essas realidades, assim como precisamos reconhecer os aspectos generosos e acolhedores da nossa humanidade.

O que artistas e acadêmicos podem fazer para resistir a essa onda de censura?

Artistas e acadêmicos estarão na linha de frente — especialmente aqueles que criam por necessidade, independentemente de bolsas ou lucros. Sempre foi assim. Na epidemia de AIDS, a arte foi crucial para enfrentar a crise. Não preciso dizer como resistir à censura, porque sei que artistas e intelectuais comprometidos continuarão fazendo seu trabalho.

Como a diáspora caribenha e outros grupos marginalizados podem construir redes de apoio para combater essa situação?

A pior coisa agora é se isolar. No início, me senti sozinho e impotente. Mas me conectei com feministas experientes que me ajudaram a transformar o sentimento de derrota em força. Quando a notícia se espalhou, fui tocado pelo apoio recebido. Isso me lembrou: você não está sozinho nisso. Precisamos evitar o isolamento, buscar comunidade, não apenas para ativismo, mas para compartilhar momentos de alegria e camaradagem. Isso nos fortalece.

Você tem novos projetos ou estratégias para continuar compartilhando seu trabalho apesar do cancelamento?

Sim. Embora a exposição tenha sido cancelada, planejo preservar seus elementos e continuar dialogando com as pessoas que entraram em contato. Também comecei a trabalhar em um novo livro, ao qual espero me dedicar nos próximos dois anos.

Muito obrigada, Andil. Esperamos recebê-lo no Brasil, onde intelectuais lutam diariamente para preservar alguma liberdade e fora de uma democracia agonística, onde quisera que adversários políticos fossem reconhecidos como oponentes legítimos, e não como inimigos — como nos lembra Chantal Mouffe.

The Art of Andil Gosine and the Intersections of Colonialism, Sexuality, and the Environment

Interview by Sara Wagner York

Andil Gosine, an artist and scholar from Trinidad and Canada, explores the intersections of colonialism, sexuality, the environment, and law within the Caribbean context. His work investigates how colonial laws and imposed social norms have shaped not only human relationships with nature but also repressed queer and non-heteronormative identities in the region. His book Nature’s Wild: Love, Sex, and Law in the Caribbean presents a compelling narrative, blending personal and cultural histories with academic analysis. In it, Gosine challenges the colonial legacies present in both environmental policies and sexuality laws, advocating for a reconnection with local knowledge and traditions as a path to liberation.

Beyond his academic work, his visual art (The Art of Andil Gosine) addresses themes of identity, diaspora, and belonging. Using photography, mixed media, and installations, his work questions dominant narratives about the Caribbean and its LGBTQ+ communities. Adopting a decolonial perspective, Gosine argues for dismantling oppressive systems and celebrating Caribbean cultural and sexual diversity. One of his most notable projects, Nature’s Wild, was a solo exhibition that reshaped the conventional model by positioning him as a curator of collaborative works.

In March, we published an article on the censorship imposed by the Trump administration on Diversity, Equity, and Inclusion (DEI) policies: The Collapse of Scientific Research: A Look at Censorship in the U.S. and Brazil. Since then, many questions and stories have emerged. Through the collaboration of Professor Dr. Fabio Oliveira, I decided to interview Professor Dr. Andil Gosine, whose work investigates the relationship between colonization and nature. Our conversation addressed his recent exhibition in New York, which was canceled due to Trumpist policies. Below is our discussion:

How did you receive the news about the cancellation of your exhibition at the Art Museum of the Americas?

I was in bed on the morning of February 5, with pneumonia, when the Museum Director called me. I couldn’t speak, so I didn’t answer. She sent a message saying she needed to speak with me immediately. When I called her back, she gave me the news: I was instructed to cancel the exhibition.

What does this represent for queer and racialized artists and scholars in the current context?

These are frightening times. This cancellation is a clear example of the measures taken against those who do not conform to the ongoing political shift. It’s worth noting that I never used racial or gender categories to define my exhibition. From what I understand, that’s how it was labeled internally: the Canadian queer exhibition. But only half of the artists were queer, and some were white. What they all had in common was that they were collaborators — queer and non-queer, men and women, Indigenous, Afro-Caribbean, white Canadians, Indo-Caribbean, etc. I liked their work and believed that together we could create something meaningful.

Do you see this decision as part of a larger movement to suppress dissenting voices?

Ideological regimes always try to silence dissenting voices because they disrupt their plans. Powerful elites understand how fundamental and transformative art is, which is why they try to control what artists express.

Your work frequently addresses colonialism, ecology, and sexuality. Did you expect this kind of reaction in 2025?

Not at all. I chose to work with the Art Museum of the Americas because I knew I would have full control over my vision. Until the moment of cancellation, the Museum Director never questioned any piece or idea of mine. She always supported my independence.

How are governments and institutions attempting to control art and dissenting discourse today?

It will take time to document and analyze this, but we need to start. If I didn’t have a background in international politics or experience with global organizations, would this story have come to light? Most art journalists covering the story initially didn’t even know what the Organization of American States was. We need to map out the specifics of each case, without falling into simplifications like blaming Trump. This is much bigger than one man.

What impact does this censorship have on the artistic and academic production of queer and racialized individuals?

These actions create a chilling effect, causing many to fear for their careers. When I was given a platform to expose what happened, I reached out to others to share this space, but no one accepted. The fear is real and paralyzing.

Your book Nature’s Wild explores the intersections of colonialism, sexuality, and the environment. How do these issues connect to the present moment?

It’s striking how many of the themes in the book are relevant to understanding the present. The central question of the book is that humans need to reflect on the effort they make to pretend they are not animals and how this denial of animality harms us. I think Donald Trump understands the human and animal condition in all its complexity — including its darkest aspects — better than many progressives, who still insist on naïve and moralistic political approaches. We are witnessing humans acting on basic instincts — closing off, protecting themselves, being tribal. We need to confront these realities, just as we need to recognize the generous and welcoming aspects of our humanity.

What can artists and scholars do to resist this wave of censorship?

Artists and scholars will be on the front lines — especially those who create out of necessity, regardless of grants or sales. It has always been this way. During the AIDS epidemic, art was crucial in confronting the crisis. I don’t need to tell people how to resist censorship because I know that committed artists and intellectuals will continue doing their work.

How can the Caribbean diaspora and other marginalized groups build support networks to combat this situation?

The worst thing right now is to isolate oneself. At first, I felt alone and powerless. But I connected with experienced feminists who helped me turn that feeling of defeat into strength. When the news spread, I was moved by the support I received. It reminded me: you are not alone in this. We need to avoid isolation, seek community, not just for activism but to share moments of joy and camaraderie. This strengthens us.

Do you have new projects or strategies to continue sharing your work despite the cancellation?

Yes. Although the exhibition was canceled, I plan to preserve its elements and continue engaging with the people who reached out. I have also started working on a new book, which I hope to dedicate myself to over the next two years.

Thank you very much, Andil. We look forward to welcoming you to Brazil, where intellectuals fight daily to preserve some freedom within an agonistic democracy — where political opponents are recognized as legitimate adversaries, not as enemies, as Chantal Mouffe reminds us.

--

--

Sara Wagner York
Sara Wagner York

Written by Sara Wagner York

Author, teacher, transgirl, father (yes!) and grandma...

No responses yet