O polêmico transódio que tenta bloquear a lei de identidade de gênero na Escócia

Sara Wagner York
5 min readDec 3, 2022

Tradução e revisão: Sara Wagner York / Nana Soares

O projeto busca despatologizar a alteração documental

Na Escócia, a primeira-ministra Nicola Sturgeon está promovendo uma reforma da Lei de Reconhecimento de Gênero que, alinhada às pioneiras regulamentações argentinas, elimina a exigência de diagnóstico médico. O limite de idade para poder acessar o direito de alteração de registro também é reduzido de 18 para 16 anos, entre outras alterações. O objetivo é despatologizar a lei e simplificar o procedimento, com uma perspectiva de direitos humanos. Esperava-se que fosse aprovado pelo Parlamento antes do Natal, mas o debate pode travar depois que o relatora especial da ONU sobre violência contra mulheres e meninas, Rem Alsasmen, enviou uma carta de 9 páginas ao governo do Reino Unido, onde argumenta que as mudanças propostas arriscam “ abrir a porta” para homens predadores que abusam de mulheres em espaços separados por sexo, como vestiários e banheiros.

Em sua carta, a relatora Alsasmen escreveu: “Tais propostas abririam potencialmente as portas para homens violentos que se identificam como homens abusarem do processo de aquisição de um GRC (Certificado de Reconhecimento de Gênero) e dos direitos associados a ele. Isso apresenta riscos potenciais à segurança das mulheres em toda a sua diversidade. O governo escocês… não fornece nenhuma proteção para garantir que o procedimento não seja, na medida do razoavelmente possível, abusado por predadores sexuais e outros perpetradores de violência. Isso inclui acesso a espaços para pessoas do mesmo sexo e espaços baseados em gênero”.

Em dez anos de vigência da legislação argentina, baseada na autopercepção -como propõe a reforma do primeiro-ministro escocês- e nos Princípios de Yogyakarta -que se orientam para a aplicação dos padrões internacionais de direitos humanos já vigentes na legislação e o acesso à justiça em cada Estado por pessoas LGBTTTI — , não houve casos de apropriação indébita da norma para cometer agressões sexuais. Além disso, se um homem quiser entrar em um banheiro para atacar alguém, ele o fará além das placas na porta.

“Não há provas e é totalmente absurdo e baseado em preconceito pensar que os homens querem se perceber como mulheres para agredir sexualmente as mulheres. Ficar com a ideia de que alguém vai mentir para levar vantagem é ignorar a vida das pessoas trans, cujas histórias ainda são marcadas pela discriminação e violação de direitos”, disse a advogada Raquel Asensio, coordenadora da Comissão de Gênero da Ministério Público da Defesa, cujo objetivo é ampliar o acesso da mulher à justiça e promover uma melhor defesa de seus direitos.

Questionada sobre essa polêmica, a Ministra da Mulher, Gênero e Diversidade da Nação, Ayelen Mazzina, lembrou que a Lei 26.743, promulgada em 2012, foi “a primeira no mundo que não patologiza identidades trans, facilita o acesso a mudanças de registro e estabelece que a identidade de gênero é uma questão de autopercepção”. Também considerou que “qualquer disposição que exceda o consentimento livre e informado, especialmente a exigência de requisitos médicos ou outros que retardem o reconhecimento dessa identidade autopercebida, não apenas revitimiza e retarda, mas também vai contra os padrões de direitos humanos que a Corte Interamericana estabeleceu”. Por isso, acrescentou, “falar de igualdade é falar de transfeminismo. Em última análise, trata-se de justiça social.”

Uma das vozes mais poderosas contra a reforma é a da autora da saga Harry Potter: No mês passado, J.K. Rowling saiu duramente contra a primeira-ministra escocesa, acusando-a de “ignorar” os direitos das mulheres e alegando que ela seria a culpada pelo estupro e agressão de meninas ao permitir que as pessoas definissem seu gênero com base em sua autopercepção, sem um certificado médico. Por vários anos, Rowling foi marcada como “transodiante” por suas declarações. Em 2020, esteve em meio a uma polêmica por causa de seu romance Troubled Blood, onde o protagonista é um serial killer que se veste de mulher para cometer crimes, o que foi interpretado por seus detratores como mais um de seus ataques à comunidade trans.

“A lei de identidade de gênero na Argentina foi um marco em nossa história jurídica. Longe de abrir caminhos distorcidos ou gerar comportamentos abusivos, é hoje uma forte ferramenta para prevenir a discriminação contra pessoas que optam por diferentes identidades de gênero, além do fato de que o cumprimento em todas as áreas ainda precisa ser assegurado”, disse Mariela Labozetta ao Página/12, diretora da Delegacia Fiscal Especializada em Violência contra a Mulher (UFEM) do Ministério Público da Nação.

Os que se opõem à reforma escocesa dão o exemplo de um caso registrado em uma prisão feminina em julho deste ano nos Estados Unidos, onde uma mulher trans detida estuprou duas detentas.

“Esse tipo de declaração omite que as pessoas têm namoros heterossexuais e casamentos heterossexuais que resultam em um número terrível de feminicídios e outras lesões físicas e mentais muito graves, mas não há nenhuma proposta para proibir o casamento ou a heterossexualidade porque esses casos muito numerosos continuam sendo vistos. como excepcional e fora do propósito do casamento”, disse a ativista María Luisa Peralta, da Akahatá — Equipe de Trabalho em Sexualidade e Gênero.

E considerou que na oposição à reforma da lei escocesa “existe uma dupla moral traiçoeira que só se explica pela transfobia e pelo essencialismo”.

Não apenas na Argentina não há precedente para tal apropriação indevida da Lei de Identidade de Gênero; nem em outros países da região, como Chile ou Uruguai.

Também deve ser lembrado que a maioria dos abusos sexuais contra crianças são perpetrados por homens heterossexuais da própria família das vítimas, muitas vezes pais, ou avós, ou pessoas de confiança, de seu meio, como padres católicos.

O projeto está atualmente em uma segunda fase de debate: uma maioria parlamentar em uma comissão já manifestou seu apoio à despatologização. No entanto, a relatora Alsasmen pediu a interrupção do avanço do tratamento, dizendo mesmo que seu impacto nos direitos das mulheres terá consequências globais. Em entrevista ao The Times, ela afirmou ter recebido “muitas mensagens de mulheres em muitos países da Europa e além” agradecendo por levantar suas preocupações.

O que está por trás dessa polêmica é a perspectiva essencialista de um setor do feminismo que reivindica apenas mulheres registradas como mulheres desde o nascimento como sujeitos vulneráveis ​​pelos quais direitos devem ser lutados e reivindicados proteção, e demoniza as identidades trans.

O pânico moral, aprofundado por preconceitos, é um mau conselheiro.

https://www.pagina12.com.ar/503124-la-polemica-transodiante-que-intenta-bloquear-la-ley-de-iden

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