O que é psicologia crítica? Tentando responder em dez minutos

Sara Wagner York
6 min readMar 2, 2020

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David Pavón-Cuéllar

Tradução: Sara Wagner Pimenta Gonçalves Jr

Apresentação do livro Psicologia crítica: definição, antecedentes, história e atualidade (Cidade do México, Itaca e UMSNH, 2019) na Feira Internacional do Livro do Palácio de Minería, Cidade do México, 23 de fevereiro de 2020

A psicologia crítica é um sintoma da psicologia, uma irregularidade perturbadora e reveladora, um sinal de alerta, um desconforto significativo, um sinal de que algo está errado na psicologia como um todo.

É a psicologia que é finalmente tomada como um objeto. Não é nada menos que a sua auto-consciência. É o momento do seu auto-exame, do seu auto-diagnóstico, da sua auto-análise.

É uma reviravolta precipitada para cumprir tardiamente com o requisito crítico inaugural de qualquer ciência. É o cumprimento desse requisito com mais de um século de atraso. É a tentativa vã de endireitar demasiadamente tarde, algo que já se desenvolveu tortuosamente.

É um gesto pelo qual a psicologia sai de si mesma para se voltar reflexivamente, para aquilo que é, para aquilo em que está fundada e para aquilo para o qual existe, aquilo em que está inserida e que serve, como é o sistema capitalista, heteropatriarcal e colonial. É, portanto, uma reflexão sobre teorias e práticas psicológicas e sobre aquilo de que elas fazem parte. É um retorno crítico da psicologia sobre si mesma e sobre as suas cumplicidades ideológicas e políticas.

É a psicologia contra a psicologia. É o que ela faz, quando já não quer ser o que é. É a não-conformidade da psicologia e conflito consigo mesma.

É uma estratégia, bem descrita por Ian Parker, estar com a psicologia e contra ela, dentro e fora dela, pensando sobre ela, sem esquecer todo o resto. É a atenção, a consciência e a memória que são dirigidas para o exterior da esfera psicológica para explicar o que está acontecendo no interior. É a explicação da psicologia pelo patriarcado, pela modernidade, pelo capitalismo, pelo colonialismo, pelo neoliberalismo e por tudo o mais que determina as teorias e práticas dos psicólogos.

É como um mirante para ver além do horizonte estreito da realidade interna e descobrir a realidade externa. É uma janela sobre o mundo numa psicologia sem mundo, sem mundo, como Klaus Holzkamp tão bem observou.

É o único setor da psicologia em que os psicólogos podem criticar não só as correntes que rivalizam com as deles, mas a psicologia como um todo, censurando-a, por exemplo, como Politzer, por seu caráter abstrato e mitológico, ou, como Vygotsky, por seu lado eclético, trivial, idealista e pequeno-burguês.

É um intervalo de reflexão na atividade técnica precipitada não reflexiva. É uma pausa para os psicólogos pararem, para deixarem de fazer o que fazem automaticamente, para deixarem de pensar apenas em como fazer o que fazem e para se perguntarem finalmente o que raio estão a fazer. É um momento para os psicólogos se fazerem a pergunta incômoda que Kangaroo lhes faz, para se perguntarem exatamente o que estão fazendo, por que estão fazendo, para que estão fazendo, para quem estão fazendo.

É como um centro de recuperação para deixar de se embebedar com a cientificidade da psicologia, para deixar de fazer figura de parvo com os rituais psicológicos supostamente científicos, para desconfiar da objectividade estatística e da materialidade neuropsicológica, para gozar com a bata branca e com as experiências, admitir que os psicólogos reverenciam e simulam a ciência mais do que a praticam, ousar criticar a ideologia da psicologia, como fizeram Louis Althusser e os Althusserianos, incluindo Thomas Herbert, Didier Deleule, Charles Sastre, Nestor Braunstein e outros.

É a má consciência da psicologia, o seu eu interior no qual não se pode esconder dos seus próprios olhos nem dos seus serviços ao poder que Dennis Fox, Tomás Ibáñez e outros anarquistas lhe recordam, nem a sua conivência com os dispositivos disciplinares e especificamente prisionais que Michel Foucault descobriu para ela, Nikolas Rose e outros foucaultianos, nem sua cumplicidade próxima com o capitalismo lhe foi revelada por marxistas como Ian Parker, Athanasios Marvakis, Fred Newman, Lois Holzman, Carlos Pérez Soto, Michael Arfken, Oswaldo Yamamoto, Fernando Lacerda, Nadir Lara e muitos outros.

É uma zona de liberdade e tolerância não temer a polícia da psicologia supostamente científica, exercer os direitos de relativizar o conhecimento psicológico, questionar sua objetividade e universalidade, e investigar como foi construída e argumentada para se tornar evidência incontroversa, como fizeram Kenneth Gergen, Jonathan Potter, Michael Billig, Ian Parker e os outros analistas do discurso crítico.

É uma forma de consciência política e histórica numa área onde reina a despolitização e a desistorização.

É um paraíso para a política no campo aparentemente mais apolítico das ciências humanas e sociais. É uma trincheira para psicólogos politicamente engajados, para radicais, para anti-capitalistas, para gays afirmativos, para anti-colonialistas, para antiracistas, para representantes do feminismo, para defensores do LGBT ou da psicologia queer ou performativa.

É indisciplina na disciplina psicológica, dissidência no seu consenso, exceção à sua regra, subversão do seu domínio nos campos científico, acadêmico e profissional.

É como um barco para ir contra a maré num mar de indiferença em que tudo segue a corrente, a inércia das coisas, o senso comum, o pensamento único, a ordem estabelecida, as imposições do capitalismo sempre colonial e patriarcal, agora neoliberal e neofascista.

É uma tribuna para nossas colegas feministas, para Sue Wilkinson denunciar como a psicologia confunde o masculino com o normal e universal, para Celia Kitzinger e Rachel Perkins nos mostrar como os psicólogos patologistas patologizam a feminilidade, para Erica Burman demonstrar a profunda incompatibilidade entre o feminismo e uma psicologia na qual tudo o que está associado à mulher é desvalorizado.

É um bastião da periferia para expoentes da psicologia indígena como Narcisa Paredes-Canilao nas Filipinas, para defensores da psicologia africana como Nhlanhla Mkhize na África do Sul, para psicólogos anticoloniais como Somali Abdilahi Bulhan e Rozas chilenas alemãs, pelos psicólogos da libertação que seguem Ignacio Martín-Baró na América Latina e por todos os outros que resistem contra o imperialismo da psicologia euro-americana, contra seu eurocentrismo, contra suas generalizações, contra a colonialidade envolvida nessas generalizações, contra a ignorância de outras formas de subjetividade diferentes da judaico-cristã branca.

É um lugar para deixar de objetivar o sujeito que por definição não pode ser objetivado, para deixar de incorrer na objetivação psicológica denunciada por Kant, para finalmente estudar a subjetividade como o que ela é, como uma subjetividade, como Fernando González Rey soube fazer de forma inigualável.

É uma mudança de perspectiva para os psicólogos da libertação atenderem finalmente aos de baixo e não apenas aos de cima, para Holzkamp e seus seguidores considerarem o ponto de vista do sujeito, para os freudianos ouvirem este assunto, para Maritza Montero, Irma Serrano García, Fátima Quintal de Freitas e outros psicólogos sociais comunitários latino-americanos também ouvirem as comunidades, levarem-nas a sério, fazerem o que querem em vez de fazerem o que a psicologia quer fazer com elas.

É uma resolução de tomar uma posição pelos pobres, pelos nossos povos, pelas maiorias populares, como em Ignacio Martín-Baró e por aqueles que seguiram seus passos, incluindo Mauricio Gaborit, Alejandro Moreno Olmedo, Jorge Mario Flores Osorio, Ignacio Dobles Oropeza, Bernardo Jiménez Domínguez, Germán Rozas, Mark Burton, Edgar Barrero Cuellar e muitos outros, e muitos outros.

É também um reposicionamento da psicologia em favor das vítimas e dos perseguidos, como na chilena Elizabeth Lira. É também um compromisso com a memória, como na própria Elizabeth Lira e sua compatriota Isabel Piper.

É o caminho que se percorre ao caminhar para o horizonte de uma psicologia que não está ao serviço do poder por sua vez, que não cumpre o que a classe dominante lhe confia, que não sanciona cientificamente a subjectividade capitalista, heteropatriarcal e colonial, que aceita outras formas de subjectividade que são inadequadas e disfuncionais para o sistema, dissidentes e não conformistas, desajustados e subversivos.

É finalmente um aviso para o exterior da psicologia. É um aviso para aqueles que já se acostumaram aos psicólogos, para aqueles que ainda não se tornaram conscientes de todo o mal que a psicologia pode fazer, para aqueles que não viram o que significa a psicologização da política. É para eles entenderem que psicologizar a política é despolitizar a sociedade, é pulverizá-la em átomos individuais, é fazê-la funcionar como a psicologia que funciona como o capitalismo, é impor uma lógica capitalista disfarçada à psicologia, tudo isso foi muito bem analisado por Ian Parker e Jan De Vos.

PS: Chegou até aqui? Deixe seus claps! Tudo aqui é voluntariamente construído, inclusive meu tempo…

Original: https://davidpavoncuellar.wordpress.com/2020/03/01/que-es-la-psicologia-critica/

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