Por que a ideia de ‘gênero’ está provocando reações negativas em todo o mundo?

Sara Wagner York
11 min readOct 23, 2021

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Judith Butler

TRADUÇÂO: Sara Wagner York ; REVISÃO: Sônia Correa /SPW

Cada vez mais, os autoritários comparam ‘sexismo’ a ‘comunismo’ e ‘totalitarismo’.

Em junho, o parlamento húngaro votou esmagadoramente para eliminar todo o ensino relacionado com “homossexualidade e mudança de gênero”, das escolas públicas, associando os direitos e a educação em relação as pessoas LGBTQI à pedofilia e à política cultural totalitária. Em finais de maio, deputados e deputadas dinamarqueses aprovaram uma resolução contra o “ativismo excessivo” em espaços de de pesquisa acadêmica, incluindo estudos de gênero, teoria racial, estudos pós-coloniais e de imigração na sua lista de responsáveis pelo problema. Em dezembro de 2020, o Supremo Tribunal da Romênia derrubou uma lei que teria proibido o ensino da “teoria da identidade do gênero”, mas o debate que aí se desenrola continua intenso. Na Polônia, espaços “livres de pessoas trans” foram estabelecidos por forças transfóbicas, ansiosas para purificar a Polônia de influências culturais corrosivas vindas dos EUA e do Reino Unido. Em março desse ano, a saída da Turquia da Convenção de Istambul provocou estremecimentos na UE, pois uma das suas principais objeções era a inclusão de proteção de mulheres e crianças contra a violência, e este “problema” estava ligado à palavra estrangeira “gênero”.

Os ataques à chamada “ideologia do gênero” cresceram nos últimos anos em todo o mundo, dominando um debate público alimentado por redes eletrônicas e apoiado por amplas organizações católicas e evangélicas de direita. Embora nem sempre estejam de acordo, estes grupos convergem em torno da ideia que a família tradicional está sob ataque, que, nas salas de aula, as crianças estão sendo doutrinadas para se tornarem homossexuais; “gênero” é uma ideologia perigosa, senão mesmo diabólica, que ameaça destruir famílias, culturas locais, a civilização, e até o próprio “homem”.

Não é fácil reconstruir, completamente, os argumentos utilizados pelo movimento anti “ideologia de gênero” porque não se apoiam em parâmetros de consistência ou coerência. Esse movimento agrega e propaga reivindicações incendiárias por quaisquer meios retóricos necessários a fim de derrotar o que veem como “ideologia de gênero” ou “estudos de gênero”. Por exemplo, opõe se ao “gênero” porque o conceito negaria reputadamente o sexo biológico ou porque mina o caráter natural ou divino da família heteronormativa. Teme que os homens percam as suas posições dominantes ou sejam, fatalmente, diminuídos se começarmos a pensar segundo a teoria do gênero. Acredita que crianças são levadas a mudar de gênero, que são ativamente recrutadas por gays e trans ou pressionadas a declararem-se como gays em ambientes educativos, onde o discurso aberto sobre gênero é caricaturado como forma de doutrinação. E, preocupa- se que se algo chamado “gênero” for socialmente aceito, uma inundação de perversidades sexuais, incluindo bestialidade e pedofilia, vai se desencadear sobre a terra.

Embora seja nacionalista, homo/transfóbico e misógino, o principal objetivo desse movimento é o de fazer retroceder legislações progressistas alcançadas nas últimas décadas tanto pelos movimentos LGBTQI como feministas. De fato, ao atacarem o “gênero”, opõem-se à liberdade reprodutiva das mulheres e aos direitos dos pais e mães solteiras; opõem-se à proteção das mulheres contra o estupro e a violência doméstica; e negam os direitos legais e sociais das pessoas trans, juntamente com uma gama completa de normas legais existentes contra a discriminação de gênero, internamento psiquiátrico forçado, assédio físico brutal e homicídio. Esse fervor cresceu durante a pandemia, quando a violência doméstica disparou e pessoas e crianças queer e trans foram privadas dos seus espaços de encontro em comunidades que sustentam sua vida.

Estudos de gênero não negam o sexo; perguntam como é estabelecido o sexo, através de que enquadramentos médicos e legais

É relativamente fácil desmascarar e até ridicularizar muitas das alegações que são feitas contra estudos de gênero ou a identidade de gênero, uma vez que se baseiam em caricaturas rasas e muitas vezes se aproximam do fantasmagórico. Se importa (e esperemos que ainda importe), não há um conceito único de gênero, e os estudos de gênero são um campo complexo e internamente diversificado, envolvendo uma vasta gama de estudiosas e estudiosos. Gênero não nega o sexo, mas busca perguntar como o sexo é estabelecido, através de que enquadramentos médicos e legais, como isso mudou com o tempo e que diferença faz para a organização social do nosso mundo desvincular o sexo atribuído no nascimento da vida que daí se desenrola, incluídas questões do trabalho e do amor.

Geralmente, pensamos que a designação sexual acontece de uma só vez, mas, e se, de fato, esta for um processo complexo e passível de revisão e reversível no tempo para aquelas e aqueles que foram erroneamente designados? Levantar esses argumentos não é assumir uma posição contra a ciência, mas apenas perguntar que papel tem a ciência e a lei na regulação social da identidade. “Mas há dois sexos!” Geralmente, sim, mas mesmo os ideais do dimorfismo que regem as nossas concepções cotidianas do sexo são, em muitos aspectos, contestados pela ciência, bem como pelo movimento das pessoas intersexo, que tem mostrado como a atribuição de sexo pode ser incômoda e (in)consequente.

Fazer perguntas sobre o gênero, ou seja, sobre como a sociedade está organizada de acordo com o gênero, e sobre as consequências que isso tem para a compreensão dos corpos, a experiência vivida, as relações íntimas, o prazer, é envolver-se numa forma de indagação e investigação aberta, que se opõe a posições sociais dogmáticas cujo objetivo é conter ou fazer retroceder a transformação emancipatória. E, ainda assim, o “estudo do gênero” é objeto de oposição porque é visto como “dogma” por aquelas e aqueles que entendem estar do lado da “crítica”.

Poderíamos continuar explicando, longamente, as várias metodologias e debates no âmbito dos estudos de gênero, a complexidade da área de estudo, e o reconhecimento que esta recebeu por ser um campo de estudo dinâmico em todo o mundo, mas isso exigiria um compromisso com a educação por parte do leitor e ouvinte. Dado que a maioria destes e destas opositoras se recusa a ler qualquer material que possa contradizer as suas crenças ou o método seletivo que usam para extrair trechos de textos complexos de modo a sustentar uma caricatura, como devemos proceder?

Ainda há aquelas e aqueles que afirmam que o próprio conceito de “gênero” é um ataque ao cristianismo (ou, em alguns países, ao islamismo tradicional), e acusam as e os proponentes do “gênero” de estarem discriminando suas crenças religiosas. No entanto, o muito significativo campo de estudos sobre gênero e religião sugere que os inimigos não vêm de fora e que o dogma se encontra do lado dos censores.

Para este movimento reacionário, o termo “gênero” atrai, condensa e eletrifica um conjunto diverso de ansiedades sociais e econômicas produzidas pela crescente precariedade econômica decorrente dos regimes neoliberais, que intensificam a desigualdade social, mas também pelo confinamento pandêmico. Alimentadas/os pelo medo do colapso das infraestruturas sociais, pela raiva contra os migrantes na Europa, pelo medo de que se percam a santidade da família heteronormativa, a identidade nacional e a supremacia branca, muitos e muitas insistem que as forças destrutivas do gênero, os estudos pós-coloniais e a teoria racial crítica são os culpados. Quando o gênero é assim considerado como invasão estrangeira, estes grupos revelam claramente que estão envolvidos com o negócio de construção de uma nação. A nação pela qual estão lutando é construída com base na supremacia branca, na família heteronormativa, e na resistência a todo o questionamento crítico de normas que, claramente, tem restringido as liberdades e colocado em risco as vidas de tantas pessoas.

Como muitas feministas têm argumentado, com razão, o desaparecimento dos serviços sociais sob o neoliberalismo colocou a família tradicional sob pressão, pois ela deve providenciar o trabalho de cuidados. Por sua vez, a fortalecimento das normas patriarcais na família e do Estado tornou-se, para muitas pessoas, imperativo para fazer face aos serviços sociais dizimados, as dívidas impagáveis, e a perda de rendimentos. É contra este pano de fundo de ansiedade e medo que o “gênero” tem sido retratado como uma força destrutiva, como influência estrangeira que se infiltra no corpo político e desestabiliza a família tradicional.

De fato, o gênero representa, ou é associado a vários tipos de “infiltrações” imaginadas no organismo nacional — os migrantes, as importações, a perturbação da economia local sob os efeitos da globalização. Assim, o “gênero” converte-se num fantasma, por vezes especificado como o próprio “diabo”, uma força pura de destruição que ameaça a criação de Deus (que eu saiba, as alterações climáticas seriam um candidato muito mais provável como causa desse desastre). Um tal fantasma de poder destrutivo só pode ser subjugado através de apelos desesperados ao nacionalismo, ao anti-intelectualismo, à censura, à expulsão, e ao estabelecimento de fronteiras cada vez mais fortificadas. Assim sendo, mais do que nunca, precisamos de estudos de gênero para compreender este movimento reacionário.

O movimento anti “ideologia de gênero” cruza fronteiras, articulando organizações da América Latina, Europa, África, e Ásia Oriental. A oposição ao “gênero” é expressa por governos tão diversos como a França de Macron e a Polónia de Duda, também circulando em partidos de direita na Itália, aparecendo nas principais plataformas eleitorais na Costa Rica e na Colômbia, e é proclamada com grande ruído por Bolsonaro no Brasil; é responsável pelo encerramento de estudos de gênero em vários locais, o caso mais infame sendo o da Universidade Europeia em Budapeste em 2017, antes da sua relocação para Viena.

Na Alemanha e em toda a Europa Oriental, o “genderismo” é comparado ao “comunismo” ou ao “totalitarismo”. Na Polônia, mais de uma centena de regiões declararam-se “zonas anti-LGBT”, criminalizando a possibilidade da ida pública aberta para qualquer pessoa percebida como pertencente a essas categorias, forçando os jovens a abandonar o país ou a viver na clandestinidade. Este furor reacionário foi alimentado pelo Vaticano, que proclamou a “ideologia de gênero” como sendo “diabólica”, qualificando-a como uma forma de “imperialismo colonizador” originário do Norte, e suscitando receios sobre a “inculcação” da “ideologia de gênero” nas escolas.

Os movimentos antigênero não são apenas tendências reacionárias, mas sim fascistas, do tipo que apoiam governos autoritários.

De acordo com Agnieszka Graff, coautora de Política Antigênero no Momento Populista, com Elzbieta Korolczuk, as redes que amplificam e circulam o ponto de vista antigênero incluem a Organização Internacional para a Família, que conta com milhares de participantes nas suas conferências e a Plataforma online CitizenGo, fundada na Espanha, que mobiliza pessoas contra palestras, exposições e candidatos políticos que defendem os direitos LGBTQI. CitizenGo afirma ter mais de 9 milhões de seguidores, prontos para se mobilizarem num instante (mobilizaram-se contra mim no Brasil em 2017 quando uma multidão furiosa queimou a efígie da minha “imagem” do lado de fora do local onde eu iria falar). A terceira é a Agenda Europa, composta por mais de 100 organizações, que define como ataques ao cristianismo o casamento gay, os direitos trans, a liberdade reprodutiva, e os esforços antidiscriminação LGBTQI.

Os movimentos antigênero não são apenas tendências reacionárias, mas sim fascistas, que apoiam governos cada vez mais autoritários. A inconsistência dos seus argumentos e a seu recurso a igualdade de oportunidades com relação a estratégias retóricas tanto da esquerda como da direita produzem um discurso confuso para uns, convincente para outros. Mas são típicos dos movimentos fascistas que distorcem a racionalidade para atingirem objetivos híper nacionalistas.

Esses movimentos recorrem, espantosamente, à linguagem da teologia da libertação e à retórica descolonial para insistir que o “gênero” é uma construção imperialista, uma “ideologia” que se impõe às culturas locais do Sul global, ou, como afirma o grupo italiano de direita Pro Vita, o “gênero” intensifica os efeitos sociais do capitalismo enquanto a família heteronormativa tradicional se configura como último baluarte contra a desintegração social e o individualismo anômico. Tudo isto parece decorrer da mera existência de pessoas LGBTQI, das suas famílias, casamentos, associações íntimas, e formas de viver fora da família tradicional ou de seus direitos à existência pública. Ou também de reivindicações legais feministas à liberdade reprodutiva, exigências feministas de que a violência sexual, bem como a discriminação econômica e social contra as mulheres, devem ser eliminadas.

Ao mesmo tempo, os opositores do “gênero” recorrem à Bíblia para defender os seus pontos de vista acerca da hierarquia natural entre homens e mulheres e os valores distintivos do masculino e do feminino (muito embora os teólogos progressistas tenham salientado que estes se baseiam em leituras discutíveis de textos bíblicos). Assimilando a Bíblia à doutrina da lei natural, afirmam que o sexo atribuído é divinamente estabelecido, sugerindo que os biólogos e médicos contemporâneos estão, curiosamente, ao serviço da teologia do século XIII.

Não importa se as diferenças cromossômicas e endocrinológicas compliquem o binarismo do sexo ou que a designação de sexo seja passível de revisão. Os ativistas antigênero afirmam que os “ideólogos do gênero” negam as diferenças materiais entre homens e mulheres, mas o seu materialismo rapidamente se dissolve frente a afirmação de que a existência dos sexos é um “fato” intemporal. O movimento antigênero não é uma posição conservadora com um conjunto claro de princípios. Como uma tendência fascista, mobiliza uma série de estratégias retóricas extraídas de vários pontos do espectro político para maximizar o medo de infiltração e destruição que advém de um conjunto diversificado de forças econômicas e sociais. Não busca a coerência, pois a incoerência é o que assegura seu poder.

Na sua conhecida lista dos elementos do fascismo, Umberto Eco escreve, “o jogo fascista pode ser jogado de muitas formas”, pois o fascismo é “uma colagem … uma colmeia de contradições”. De fato, isto descreve perfeitamente a ideologia antigênero dos dias atuais. É um incitamento reacionário, um feixe incendiário de demandas e acusações contraditórias e incoerentes. Eles se refastelam com a instabilidade que prometem conter e o seu discurso apenas cria mais caos. Através de uma série de demandas incoerentes e hiperbólicas, inventam um mundo de ameaças iminentes para clamar por governo autoritários e censuras.

Esta forma de fascismo manifesta instabilidade na medida em que afirma conter a “desestabilização” da ordem social provocada pela política progressista. A oposição ao “gênero” funde-se, frequentemente, com o furor e medo contra migrantes, razão pela qual, em contextos cristãos, muitas vezes se funde com a islamofobia. Os migrantes também são vistos como “infiltrados”, como estando envolvidos em atos “criminosos”, mesmo quando estão exercendo direitos de passagem sob proteção da lei internacional. No imaginário dos ativistas da ideologia antigênero, o “gênero” é como um migrante indesejado, uma mancha que adentra, mas, ao mesmo tempo, um colonizador ou totalitário que deve ser expulso. Uma posição que mistura, a seu bel prazer, discursos de direita e de esquerda.

Como uma tendência fascista, o movimento antigênero apoia formas de autoritarismo cada vez mais robustas. Suas táticas encorajam os poderes estatais a intervir em programas universitários, a censurar a arte e a programação televisiva, a proibir que pessoas trans tenham seus direitos legais, a proibir as pessoas LGBTQI de estarem nos espaços públicos, a minar a liberdade reprodutiva e a luta contra a violência dirigida às mulheres, crianças e pessoas LGBTQI. Ameaça com violência as pessoas, incluindo migrantes, que são retratados como forças demoníacas e cuja supressão ou expulsão promete restaurar, sob coação, a ordem nacional.

É por isso que não faz sentido para as feministas “críticas de gênero” aliarem-se com poderes reacionários que tem em sua mira as pessoas trans, não binárias e queers. Devemos todas/todos/ todes ser verdadeiramente críticos agora, pois esse não é o momento das e dos que somos alvos deste movimento nos voltarmos umas/uns contra outras/outros. O tempo da solidariedade antifascista é agora.

Judith Butler ( Berkeley University), seu livro mais recente é The Force of Nonviolence (A Força da Não-Violência, editora Boitempo, 2021).

Original: https://www.theguardian.com/us-news/commentisfree/2021/oct/23/judith-butler-gender-ideology-backlash?CMP=Share_iOSApp_Other

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