Suely Rolnik: “Temos de fazer todo um trabalho de descolonização do desejo.”

Sara Wagner York
19 min readJul 25, 2019

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A pensadora brasileira Suely Rolnik olha além do assunto para apontar as “forças dos vivos” que se esforçam para fertilizar sementes de outros mundos. Ela adverte que se as subjetividades não mudarem, será impossível avançar no âmbito da macropolítica.

Suely Rolnik (São Paulo, Brasil, 1948) é psicoterapeuta, doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade de São Paulo, com tese sobre a produção do desejo. Este brasileiro, que passou vários anos no exílio na França, leva uma vida explorando a subjetivação, explorando também a micropolítica com Félix Guattari.
Esferas de Insurrección: Apuntes para descolonizar el subconsciente (Ink and Lemon, 2019), é seu último livro. Há alguns meses, veio apresentá-lo em Madrid e teve uma longa conversa com El Salto, durante a qual expôs o seu olhar original sobre a micropolítica, a colonização do desejo ou a politização do mal-estar. O Brasil de Bolsonaro, a continuidade do ingovernável, a natureza dos novos movimentos sociais ou comuns, foram alguns dos temas que surgiram durante nosso encontro.

Antes de iniciar esta entrevista, gostaria de esclarecer que não tenho formação em teoria psicanalítica e que não tenho a certeza de ter compreendido completamente os vossos textos, aos quais tentei abordar de uma perspectiva intuitiva.

Bem, que sorte que você não tem treinamento psicanalítico, você teria mais dificuldades para entender. Para me ler não é preciso ter formação em psicanálise, filosofia ou ciências sociais, mas sim viver as experiências de que estou falando e autorizar a si mesmo a reconhecer que isso existe, que quem escreve é alguém que vive a mesma experiência e que tentou colocá-la em palavras. É a partir desta ressonância que os meus textos são lidos.

O fato é que você produz um monte de conceitos com os quais eu acho que você tem que ser respeitoso, tenha cuidado ao retirá-los de volta para não pervertê-los.

Mas de certa forma, se você diz “oh, eu tenho por intuição”, é precisamente a intuição que eu uso para escrever esses textos. Por isso digo que não depende tanto da formação que se deva saber ler, compreender o que escrevo. É claro que diferentes formações podem alimentar o pensamento de diferentes maneiras, gerar outras ressonâncias, palavras que se levam em conta, que podem servir. Mas eu trabalho a partir da intuição e é a intuição que defendo como a primeira e privilegiada origem do pensamento.

Bem, vamos abordar o que você pensou da intuição: você fala da necessidade de descolonizar e desneoliberalizar o subconsciente, o que implica a colonização de nossas subjetividades?

A cada regime, a cada contexto histórico, a cada tipo de sociedade corresponde um modo de funcionamento da subjetividade. É a subjetividade que dá à carne a consistência desse regime. O que estou tentando demonstrar, em primeiro lugar, é que este funcionamento subjetivo é político, e porque é que é político? Porque é a base existencial de um sistema epistemológico, histórico, cultural.
Não se pode transformar, por exemplo, a distribuição de direitos dentro deste sistema, que é o objetivo da macropolítica, sem transformar também o tipo de subjetividade que lhe corresponde: porque se as coisas se movem apenas em um nível sem se movimentarem no outro, acabam voltando ao mesmo lugar.
Falamos dos fracassos da esquerda e isso me irrita, não que me deixe triste, me irrita porque não se trata de fracasso: não há como não voltar ao mesmo lugar se não se intervem na esfera das subjetividades. As experiências que começaram há um século e meio — se colocarmos a data do início dessas lutas em nível macro-político na Comuna de Paris, ou na revolução haitiana — nos mostraram que: o que chamamos de fracasso não é fracasso, nos permitiu tomar consciência de que temos que avançar no âmbito das subjetividades sem abandonar a macro-política, ambas são fundamentais. Trata-se de dar passos, não para chegar ao final feliz de uma revolução comunista onde somos todos irmãos e irmãs que se amam, mas para avançar para a transformação efetiva deste tipo de sistema econômico, político e social.

Pede também o afastamento do assunto

Claro que tem a ver com o que significa descolonizar o subconsciente, de onde podemos definir que tipo de subjetividade domina num dado momento. É claro que deve haver muitas outras coisas para desenvolver, mas eu me concentrei no que tem a ver mais diretamente com o nosso modo de vida. Assim, as experiências subjetivas são experiências muito complexas, mas há duas esferas dessa experiência.

O capitalismo está conseguindo colonizar o planeta como um todo; é um regime em que não podemos mais nos reconhecer. Em nossa experiência coletiva como sujeitos, que tem a ver consigo mesmo, com a vontade, com a consciência, com a experiência que se estrutura de acordo com um repertório cultural: trata-se da experiência do mundo como um conjunto de formas, de códigos, de cenários, de personagens, de uma certa distribuição de acesso a direitos… aí usamos a percepção. Mas a percepção, o olhar, não é virgem. Te vejo e te associo a uma série de representações na minha memória: olho para a cor da tua pele, do teu cabelo, das roupas que usas, tenho em conta a tua profissão, te relaciono com o editorial que me convidou, com o teu jornal, que não é um jornal qualquer… com este conjunto de coisas posso colocar-me diante de ti, situar-me. É uma ferramenta muito importante que nos ajuda a viver socialmente, a comunicar. É o que podemos chamar de cognição e é muito necessário, mas há uma outra experiência que estamos fazendo ao mesmo tempo que esta, uma segunda experiência que para nós -os brancos modernos ocidentais no regime colonial capitalista antropocêntrico logocêntrico- é menos conhecida.
E essa experiência tem a ver com a compreensão do mundo na sua dimensão de corpo vivo. Na biosfera existem muitos elementos entre os quais se encontram os seres humanos, como baratas ou palmeiras. Nesta experiência aprendemos a alteridade do mundo não como um conjunto de formas, mas como um conjunto de forças vivas em disputa formando diferentes composições que produzem efeitos, como se nos fertilizassem.
Para entendê-lo, utilizo a imagem guarani para a garganta, que é chamada de “ninho de palavras da alma”. E se é um ninho é porque tem embriões e se tem embriões é porque foi fertilizado. Porquê? Pelo ar dos tempos. Você não vê, mas é isso, essa imagem do mundo como um corpo vivo que produz no seu corpo estados muito fortes, muito precisos, mas eles não têm uma palavra, não têm uma imagem e não têm texto. Eles não têm nada. Não é que não sejam reais, são absolutamente reais.
Quando os guaranis dizem que são sementes das palavras da alma, é porque sabem que esses efeitos do mundo vivo, esses estados se produzem ali, geram afetos, não no sentido de afeição ou amor, mas no sentido de serem afetados, são como embriões de outros mundos, de outros futuros, porque são situações do viver, que permitem que a vida se afirme, porque a vida quer continuar perseverando. Digo que essa experiência é uma experiência fora do sujeito, não é a melhor maneira de chamá-la porque acaba se referindo ao sujeito, mas a uso estrategicamente, como um conceito que é usado nessa perspectiva filosófica que é extrapessoal, que não acontece dentro da pessoa.
Quando você é habitado por mil sementes do mundo, sementes do futuro, e por outro lado você é formatado de acordo com um certo repertório cultural, há uma tensão entre essas duas experiências.
Então, o que acontece? Quando você é habitado por mil sementes do mundo, sementes do futuro, e por outro lado você é formatado de acordo com um certo repertório cultural, há uma tensão entre essas duas experiências, nessa tensão há dois movimentos que são desencadeados, um movimento que é o movimento da vida que tem que germinar, e o outro movimento que é um movimento do sujeito que tem que preservar essa forma porque a desintegração é muito assustadora.
E aí, como a vida tem que eliminar aqueles estados que produzem uma espécie de tontura, desestabilização, desconforto, é ativado como um sinal de alarme brutal, quando isso toca você, que é a vida que está lá gritando, dando sinais, que coloca a pessoa em movimento, chama o desejo de agir, para que a vida recupere um equilíbrio. E que, no caso da vida humana, é um equilíbrio emocional, existencial. É aí que se definem as diferentes políticas de desejo ou micropolítica.
Ou seja, a micropolítica não é a política da experiência fora do sujeito. É a experiência entre uma forma de existência e o que está para nascer que transforma essa forma de existência quando essa forma de existência sufoca a vida. A vida tem de encontrar outros corpos onde estar, onde se encarnar. E aí as diferentes micropolíticas são definidas.
No plano macro-político, coexistem diferentes macro-políticas: do mais revolucionário ao mais reacionário, ou seja, da vontade máxima de igualdade de direitos à vontade máxima de manter privilégios e da capacidade máxima de não deixá-los mover-se. No plano micropolítico é diferente, a micropolítica vai desde a mais ativa, aquela que consegue estar no auge do que a vida pede e deixar que se faça essa germinação até que se crie o desejo de um corpo, de um modo de existência, onde o que busca a paz encontra seu lugar. Isso transforma a realidade.

Depois há o mais reativo, que é quando o desejo atua no sentido de interromper esta germinação porque é uma subjetividade que não tolera nenhum tipo de mudança, desta maneira se interrompe todo o tempo um processo de germinação para reproduzir o status quo.
Então, o que define a micropolítica dominante no regime capitalista colonial, desde o início, com diferentes desdobramentos -estamos agora no desdobramento financeiro-neoliberal- é primeiro, que estamos reduzidos a uma experiência de sujeito, onde a subjetividade é tomada pelo deslocamento porque já existem sementes aí pressionando para germinar e porque há um descontentamento na saúde, a vida quer mais, quer diferente, porque não é mais possível.
Isso é interpretado como algo mau, uma doença ou uma inferioridade, ou como algo terrível que vem de fora, e assim se projeta a causa de seu desconforto. Se a culpa da desestabilização é minha, se vem da minha inferioridade, vou tentar imitar-me, construindo discursos, objetos, gestos, para manter a ilusão de que consegui organizar-me, para me equilibrar. Se minha opção é atribuir desconforto a outro, a maneira de recuperar o equilíbrio é projetar todo o mal sobre o outro e agir contra o outro, que é em grande parte o que está se tornando a micropolítica predominante no momento: tudo o que está distanciado de um tipo de existência hegemônica tem que ser rotulado como algo de mal e erradicar o mal que se ataca, primeiro talvez com um pequeno golpe e assim por diante até o assassinato.
A partir da dissociação do sujeito, diante do medo que tenho do deslocamento, o que acontece? Quando o alarme vital atua, qualquer que seja a micropolítica, a função vital é posta em movimento e o desejo é invocado. Este poder vital na sua essência é uma essência de agir para criar. É a partir deste momento de impulso vital que o capital se nutre, no mais básico, no mais essencial. Ou seja, o capital não se alimenta apenas da força vital em sua expressão de trabalho, como pensava o marxismo, mas também da própria vida, do próprio desencadeamento do movimento vital quando é necessário criar algo. É esse movimento que se desvia do curso da criação de algo, do seu destino ético, e sua força é direcionada em outra direção que é produzir cenários para o investimento de capital e para alimentar o consumo.
Então o desejo é pervertido a partir do momento em que é libertado. É como se o desejo fosse “prostituído”. Não é que alguém venha de fora e lhe diga, vá lá. É que seu próprio desejo produz essa realidade capitalista sem que você perceba. Mesmo quando você é alguém à esquerda, o mais alto grau de revolucionário, é por isso que o desejo ou o impulso vital em si é colonizado, você tem que fazer todo um trabalho de descolonização do desejo.

Como um olhar sobre a micropolítica pode ajudar nos a compreender o fenômeno Bolsonaro?

Para destruir totalmente o Estado para que sirva apenas ao mercado sem qualquer obstáculo ou barreira, era necessário manter no poder do Estado, conservadores totais, políticos antiquados, para que fizessem o trabalho sujo de privatizar tudo, de destruir a legislação trabalhista. Eu diria que estes políticos seriam como os assassinos contratados do neoliberalismo, expulsos depois da cena. Por exemplo, alguém como Temer.
Mas então o que tem sido colocado em torno destes conservadores é um muito mais grosseiro, óbvio, psicopático, você pode dizer quase ciclo psicótico de conservadorismo. Hoje vejo que para que o neoliberalismo possa consumar seu poder global, global, como diz um pensador brasileiro, é necessário produzir uma subjetividade identitária, conservadora. É necessário manter uma maioria totalmente tomada, com a subjetividade totalmente dissociada da experiência vital, totalmente reduzida ao sujeito.

Como uma das soluções assumidas pelo sujeito para agir quando a vida está desequilibrada, em crise, é projetar uma causa sobre a outra, é muito necessário construir este bode expiatório, mas permanentemente. No início, o bode expiatório eram os governantes do Partido dos Trabalhadores, muito antes da candidatura de Bolsonaro. No segundo episódio, os elementos são perseguidos na sociedade, qualquer modo de existência que se distinga minimamente nesta forma hegemônica, familiarista, paternalista, patriarcal, heteronormativa, nacionalista.

No entanto, o neoconservadorismo veio para ficar.

Em meu livro explico o golpe como uma série de televisão que começou a ser pensada a partir do momento em que os governos progressistas tomaram o poder em vários países latino-americanos após o fim das ditaduras. Este é o início de uma estratégia que é desenvolvida em muitos capítulos. Ainda estamos na série. Por exemplo, no Brasil, podemos datar a eleição de Lula quando eles começam a pensar em como efetivamente destruir isso, eram necessários conservadores no poder, como Temer [preso], mais um dos políticos mais corruptos, mais horríveis, que tem uma mentalidade colonialista totalmente conservadora, para fazer o trabalho sujo. E é aí que os Chicago Boys, os economistas neoliberais e os técnicos do neoliberalismo seriam instalados.
Mas então o que tem sido colocado em torno destes conservadores é um muito mais grosseiro, óbvio, psicopático, você pode dizer quase psicótico, ciclo de conservadorismo. Por exemplo, Bolsonaro, parece que sua candidatura começou a ser construída em 2014, quando Dilma foi expulsa, o que tem sido uma parte das forças armadas que o chamaram para construir sua candidatura. Essa parte das forças armadas, a mais terrivelmente conservadora e violenta, são setores que mesmo durante a ditadura constituíram a ala mais violenta. E não é que a ditadura fosse suave, foi muito difícil.

Para que o neoliberalismo possa consumir seu poder global, é necessário produzir uma subjetividade identitária, conservadora, para manter uma parte da sociedade totalmente assumida, com a subjetividade totalmente dissociada da experiência vital.

O que isso implica para a sociedade brasileira?

Além de projetar no outro um processo de desconforto, o que está sendo autorizado agora é a passagem para o ato, como se diz na psicanálise. Em outras palavras, não só você pode odiar o outro, ou dizer ou contar a ele/ela, mas você pode passar o ato da maneira mais violenta possível. Duas das primeiras decisões propostas por Bolsonaro ao entrar como presidente foram permitir armas em casa e dar permissão à polícia para matar. Não é que alguém te diga para agir. De seu próprio desejo, você o faz. Então, em paralelo, enquanto isso acontece como se fosse uma espécie de momento de “homem das cavernas” na sociedade, o capital pode administrar todos os estados, liberar a terra totalmente para a especulação. Então, o que eu inicialmente pensei que seria momentâneo, uma aliança para limpar a terra sem ter que ser mantida a tempo, no final você não sabe quanto tempo vai durar ou para onde vai.

Você me fez pensar em dois autores: Naomi Klein e sua doutrina de choque semeando um campo de perplexidade e indefensabilidade onde o capital pode saquear tudo sem restrições, a pedagogia da crueldade de que fala Rita Segato, apontando para uma fase do capitalismo onde é necessário romper toda empatia, todos os laços com as pessoas.

No Brasil, o choque foi quando o processo contra Lula e o PT, que é 2012, começou há muito tempo. Houve uma identificação de grande parte da sociedade brasileira que está abaixo da classe média com o PT, porque com todas as críticas que podemos ter, é a primeira vez em toda a história do Brasil que as políticas sociais realmente tiraram uma parte da população da miséria e isso é incontestável.

As pessoas viveram isso, não que tenham ouvido uma ideologia sobre isso, viveram isso, algo que permitiu coisas extraordinárias, acesso à educação, poder viver numa casa, poder comer. Houve muita identificação com o PT e um certo conforto subjetivo: a vida encontrou um lugar melhor. Depois, começam a demonizar Lula, com horas e horas da Globo falando de corrupção: isso produz um choque. Fora da elite e da classe média, no resto da população isso produziu uma crise subjetiva tão forte que, depois de um tempo de propaganda, desta narrativa que foi construída, as pessoas não tinham mais a capacidade de lembrar sua própria experiência.

Há também a ideia — é o momento da crise econômica internacional — de que de 2005 a 2016 tudo é atribuível ao PT, na televisão não há notícias sobre a crise internacional, toda a crise econômica, a culpa foi do PT. Isso produz uma grande crise subjetiva, você perde totalmente seu solo, seus parâmetros.
Quanto a Segato, preferi não usar empatia, pensei em outra palavra e fiquei com ressonância, que não é ideal. Não é uma ressonância entre ideologias ou formas de pensar, mas uma ressonância entre experiências, ressonância entre frequências de vibração, é algo que deve ser conquistado, que não são experiências do sujeito. Mais do que empatia, eu falaria de reconhecer o efeito do outro em seu corpo, não como uma coisa ruim, mas como uma coisa essencial e cuidar disso, deixar que isso te transforme.

Você fala sobre o conhecimento do corpo. Como a micropolítica ativa se relaciona com o conhecimento do corpo? Onde está sua ressonância?

Primeiro, o conhecimento do corpo: Eu disse que a forma de conhecimento do assunto é o que chamamos de cognição, a forma de conhecimento de sua experiência fora do assunto, aquilo que não tem palavra, nenhuma imagem, poderíamos chamar de intuição. Mas a palavra intuição é tão marcada de inferioridade, como você é quando diz, “oh desculpe-me, eu li seu trabalho a partir da intuição”.
Sim, esse conhecimento de fora do assunto é sempre marcado pela inferioridade e pela ignorância, e é por isso também que as mulheres foram queimadas como bruxas, porque tinham isso mais desenvolvido -não biologicamente, mas culturalmente-. Se eu disser intuição, os homens intelectuais dirão: essa pequena mulher diz bobagem pura, ela não sabe nada. Então, o que é que lhe chamamos? Eu chamei-lhe conhecimento da vida ou conhecimento do corpo ou conhecimento etológico porque a etologia, que é a ciência do comportamento humano e animal, nos ensina muito sobre essas outras esferas da nossa experiência.
Na macropolítica, as pessoas juntam-se para cooperar. Eles partem da mesma posição na hierarquia social, uma questão de identidade de classe, ou gênero, ou uma posição subordinada nas relações de poder. E eles se juntam com palavras para descrever o que não está certo, com um programa para mudá-lo, mesmo dentro da estrutura do Estado. Na micropolítica se une aos outros, se coopera diferentemente porque é de uma ressonância, do conhecimento do corpo, de uma ressonância entre os corpos, das subjetividades em resistência. O que está começando a germinar, diante do afogamento das forças, da vida.
Se eu digo ressonância, isso implica que se nos reunimos como um coletivo ou nós mesmos, não sabemos para onde vamos, mas sabemos que há algo muito genial que compartilhamos, o fato de irmos juntos atualiza esse movimento de resistência. O que eu estava tentando fazer saiu como texto, o que você estava tentando fazer saiu como uma espécie de jornal, mas estamos juntos no mesmo coletivo. O texto que sai da minha boca vem da experiência de muitos povos. Não é uma experiência do Eu, o que sai dele também não é meu, porque é a minha maneira de dar corpo a algo que já é todos os corpos. E é transindividual, não é que seja intersubjetivo, é algo que atravessa todos eles.

Se nos reunimos como um coletivo, ou não sabemos para onde vamos, mas sabemos que há algo muito legal que compartilhamos, o fato de irmos juntos atualiza esse movimento de resistência.

Por exemplo, se usarmos o meu livro e nada mais, é inútil. Mas se eu estou usando este livro neste contexto, você o jornal, a (Rita) Segato fala da pedagogia da crueldade, uma outra (Naomi Klein) da doutrina do choque, a coisa está ganhando corpo. A palavra “comum” estava muito na moda: para mim o comum é baseado neste plano que é muito diferente da ideia de comunismo (risos). Isso não acontece em uma esfera macro, ainda que a esfera macro seja muito importante, é algo que acontece nessa micro esfera de um campo de germinação comum e que também tem sua experiência comum que se torna possível na construção para que a germinação se complete.

Você fala sobre novos movimentos sociais criando uma inovação promissora: a capacidade de integrar a micropolítica e a macropolítica em si mesmas.

Sim, e digo isto tendo em mente uma imagem muito precisa, uma experiência que me leva a pensar assim e que vem das periferias das grandes cidades do Brasil, embora me refira especificamente a São Paulo, porque sei muito mais, mas é assim em todo o país. Ela estrela jovens entre 14 e 20 anos de idade, principalmente mulheres, envolvidas principalmente no movimento LGTBIQ+ e principalmente mulheres negras. Eis um bom exemplo: nos últimos dois ou três anos, houve um grande movimento para ocupar as escolas públicas. Hoje no Brasil as escolas públicas são para pobres, a classe média vai para escolas particulares. Antes, não era assim: Venho de uma família de classe média, inicialmente baixa, estudei na escola pública e era uma excelente escola.

Fui a estas escolas ocupadas várias vezes, chamaram-me para falar e foi impressionante, primeiro porque há uma invenção do modo de existir, da sexualidade, da relação com o gênero, da relação com as pessoas, uma corrente de transformação radical, radical no sentido de ir tão longe quanto possível, sem medo. Por outro lado, havia também uma forma de organização interna — e isso também tem a ver com o micro: como as relações são estabelecidas, como as tarefas são distribuídas, como o espaço é cuidado, — e uma macro inteligência mais tradicional de como provocar, como responder às atitudes do Estado, mesmo antes da polícia, se ela tentar despejar.
Assim, eles tinham uma macro-consciência política muito clara, mas também tinham uma inventividade para sair da coisa heteronormativa, patriarcal, familiar, incrível. Senti-me como se estivesse à frente de outra espécie humana. E eu vejo isso como invencível, mesmo quando no meio do processo eles desistem e ficam paralisados, alguns até morrem, mas há algo lá que é irreversível.

Por que digo irreversível? Porque eu acredito que quando há uma mudança real nas ferramentas políticas elas já não funcionam como um modelo único, por exemplo, a heteronormatividade, que é um exemplo muito simples. Então, o que é uma relação afetiva erótica? Como é construída? Quando você se afirma e vive de múltiplas maneiras, que até então estavam limitadas a um único modelo, no reino da subjetividade não há como voltar atrás. A realidade pode levar muito mais tempo para mudar, mas se a carne existencial de um regime passa por ali, e se algo se metamorfoseou totalmente, não há como voltar atrás.

Lembro-me que no ingovernável lhe perguntaram como defendê-lo e respondeu que na realidade, este era um momento, que o ingovernável certamente terminaria de alguma forma, mas que haveria uma continuidade, que algo permaneceria para materializar em outra coisa, como sempre. Foi uma resposta triste e esperançosa. No entanto, como podemos superar o fato de que nada nos parece sólido neste tempo de incerteza?

Estes dias conheci uma jovem, depois de uma conversa que fiz numa universidade. Quando terminei, ela veio falar comigo e disse: “Tenho que lhe perguntar algo muito íntimo, posso? Ele falou-me de suicídio. “Pergunta-me se tentei cometer suicídio”, disse eu. Tentei suicidar-me uma vez, e é porque não morri que estou aqui, como estou vivendo agora. Porque eu desenvolvi uma crença na vida. “Fé”, perguntou-me ela. Sim, fé na vida. A vida é muito mais perita do que eu mesma.

Desde o momento em que tive a certeza de que a vida persevera e por isso sempre encontra o caminho para continuar, também desenvolvi esta confiança e esta paciência quando a vida está em perigo. Temos de passar de uma confiança numa determinada ideologia, numa determinada forma de explicar as coisas ou de confiar em nós próprios, também no eu coletivo, para uma confiança na vida.

Você fala da bússola ética da vida (ou vital) e da bússola moral, quais são as diferenças e o que essas nuances contribuem?

O sujeito é conduzido a partir de uma bússola moral, a bússola tem a agulha que aponta o caminho, e esse caminho é formado por um certo repertório cultural com o qual nos identificamos e que escolhemos para nos guiar. Por exemplo, temos a bússola moral do pensamento de esquerda ou feminista. Moral não no mau sentido de moralista. É um sistema de valores, eu preciso disso, ele me conduz em certas esferas da vida, na tomada de decisões.
Mas fora do sujeito a bússola não é moral, não é composta de um sistema de valores, palavras, idéias, a bússola é vital no sentido de que é a vida que te alerta de como ela é sufocada e violada. Ou até que ponto, pelo contrário, está florescendo, podendo respirar.
Este é um critério para avaliar situações que é diferente do critério do sistema de valores em que vivemos. Ambos são muito importantes. Em África, só fui ao Senegal e falei com muita gente. Eles viveram uma experiência socialista, mas na sua cultura o exterior do sujeito está muito presente. Disseram-me que para eles a bússola ética é a primeira, e depois a outra. Se assim fosse na URSS, o estalinismo nunca teria acontecido, porque da bússola ética nunca se poderia assumir isso. Bye, bye Stalin.

Como politizar a vida sufocada? O mal-estar?

Que bela ideia, politizar o desconforto. Podemos dizer que de um lado é politizar o mal-estar, do outro é patologizar o mal-estar. Podemos politizar o desconforto em nome do mal, que é aquilo de que temos falado, temos de politizar em nome do bem. Sabemos que o desconforto não é um sinal de algo ruim no sentido de falta de algo, mas ao contrário, é um sinal de uma saúde vital que está reconhecendo o desconforto para que tenhamos a possibilidade de tomar consciência de que devemos nos colocar em luta, porque a vida está gritando que está sendo sufocada.

Do eu, do sujeito, compreende-se isso como uma falta de algo, mas a verdade é que é um excesso de vida que está sendo sufocado na forma do presente. Essa pode ser a forma de sua própria subjetividade, a forma de seu relacionamento amoroso, não é apenas uma situação social ampla.

Um exemplo: do ponto de vista da bússola moral, o feminismo consiste em lutar contra a desigualdade de direitos, a violência machista. Do ponto de vista de uma bússola ética e micropolítica, a resistência a essa relação de gênero é perceber que há um mal-estar, e isso porque essa forma de expressão da feminilidade é mortal. Essa imagem da noiva no bolo é completamente sufocante, então o que minha ação vai ser — é diferente da luta pela igualdade — minha ação vai ser abandonar esse personagem, lutar para produzir outro personagem porque isso não é mais possível.

Direitos: SARAH BABIKER

PUBLICADO em 2019–07–24 06:42:00

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Sara Wagner York
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Written by Sara Wagner York

Teacher, transgirl, father and grandma

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