Uma psicanálise de múltiplas cepas contingentes e simbioses

Sara Wagner York
4 min readJun 17, 2024

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por Sara Wagner York

As minhas primeiras sessões de psicanálise e terapia começaram ainda muito cedo com a minha transgeneridade gritante no interior das casas pelas quais passei. Quando penso numa psicanálise brasileira, penso justamente nessa possibilidade de conversar com gente que está profunda em vários lugares, no Brasil profundo. Uma psicanálise de múltiplas cepas contingentes, para mim, traz o significado de grupos que precisam ainda estar numa resistência contínua e continuada de atenção àqueles sujeitos que. Deslegitimar muito da nossa produção em fluxo. Quando digo isso, penso nos formatos simbióticos. Mais do que a simbiose em plena existência, o formato simbiótico é uma escolha do agente em aliança. Ao discutir a simbiose, abre o mão de qualquer estrutura parasitária, que, ao contrário da simbiose, não decide juntos a caminhar, mas sobrepõe a escolha do outro numa dinâmica de opressão e hierarquização desses sujeitos.

Lacan nos oferece uma perspectiva interessante sobre a simbiose e a intersubjetividade na psicanálise. Em seus escritos, ele enfatiza que “o inconsciente é o discurso do Outro” (Lacan, Écrits), sugerindo que a construção do sujeito está intrinsecamente ligada às relações intersubjetivas e ao contexto cultural e social em que este se insere. Dessa forma, uma psicanálise que reconhece e valoriza as vozes da periferia está, de fato, em consonância com a ideia lacaniana de que o sujeito é constituído na e pela linguagem do Outro, onde este “Outro” inclui as diversas narrativas e experiências periféricas.

As teorias múltiplas da psicanálise tentam, a todo custo, enfrentar o sofrimento do sujeito, proposto, muitas vezes, pela própria percepção de vida desse sujeito, que vem de um letramento mundo muitas vezes conturbado pela própria política de contingenciamento. Nem sempre essa estrutura dita normativa vai atender a todos do modo que pressupõe. E é exatamente pensando naquilo que diverge de uma norma que propomos outras formas, outras cepas, outras simbioses, formas outras de evidenciar que. Que as escutas ainda seguem ritos antigos de entendimento do pressuposto de uma ou de mais percepções do sujeito sobre a sua farta produção de sentidos, por vezes entrelaçada a tantas intenções de sofrimento.

Lacan afirma que “o real só se delineia pelo impossível que o atinge” (Lacan, Seminário 11), sugerindo que a psicanálise deve se confrontar com o que está além do simbolizável, com aquilo que escapa às categorias normativas. Integrar as vozes da periferia é, portanto, um movimento em direção a essa confrontação com o real, reconhecendo as múltiplas realidades e sofrimentos que não se encaixam nas molduras tradicionais da psicanálise.

Como a psicanálise tradicional muitas vezes subestima ou negligencia as narrativas da periferia? A psicanálise tradicional muitas vezes subestima ou negligencia as narrativas da periferia devido à sua ênfase nas experiências e contextos europeus, deixando de considerar as realidades e vivências específicas das comunidades periféricas. Isso ocorre devido a uma tendência à universalização dos conceitos psicanalíticos, que podem não se aplicar adequadamente a contextos culturais e sociais diversos. Além disso, a psicanálise tradicional muitas vezes não reconhece a importância da escuta atenta e sensível às vozes periféricas, o que pode resultar em uma falta de compreensão e empatia em relação às experiências dessas comunidades. Portanto, é fundamental ampliar os domínios da escuta periférica e reconhecer a diversidade de narrativas e vivências para enriquecer a prática psicanalítica e promover uma abordagem mais inclusiva e sensível às diferenças culturais e sociais.

Lacan argumenta que “a verdade tem estrutura de ficção” (Lacan, Écrits), indicando que o entendimento da subjetividade passa pela compreensão das narrativas e histórias que os sujeitos constroem sobre si mesmos. Subestimar as narrativas periféricas é perder uma dimensão crucial da verdade dos sujeitos que vivem essas realidades.

De que forma a abertura para as vozes da periferia pode enriquecer e ampliar a prática psicanalítica? A abertura para as vozes da periferia pode enriquecer e ampliar a prática psicanalítica de diversas maneiras:

  • Diversidade de Experiências: Ao integrar as vozes da periferia, a prática psicanalítica se torna mais diversificada, permitindo uma compreensão mais ampla das experiências humanas e das dinâmicas psíquicas em contextos diversos.
  • Sensibilidade Cultural: A escuta atenta e respeitosa às vozes periféricas possibilita uma maior sensibilidade cultural por parte dos psicanalistas, levando em consideração as especificidades culturais, sociais e históricas dos pacientes.
  • Inovação e Criatividade: A diversidade de narrativas e vivências trazidas pelas vozes da periferia pode estimular a inovação e a criatividade na prática psicanalítica, desafiando conceitos estabelecidos e promovendo novas abordagens terapêuticas.
  • Empoderamento e Autonomia: Ao reconhecer e valorizar as vozes periféricas, a prática psicanalítica pode promover o empoderamento e a autonomia dos pacientes, permitindo que expressem suas experiências de forma autêntica e se tornem agentes ativos no processo terapêutico.
  • Transformação Social: A abertura para as vozes da periferia não apenas enriquece a prática psicanalítica, mas também contribui para uma transformação social mais ampla, ao promover a inclusão, a equidade e o respeito pela diversidade.

Portanto, ao acolher e integrar as vozes da periferia, a prática psicanalítica se torna mais abrangente, sensível e eficaz, refletindo uma postura ética e comprometida com a promoção do bem-estar e da saúde mental em contextos diversos.

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